A maracutaia da cloroquina

Foi feito até decreto para alterar a bula. Não há mais dúvida: alguém faturou alto com a produção do remédio contraindicado pela OMS

Primeiro: aplausos, muitos aplausos para Paulo Gustavo. Hoje é dia de velar o extraordinário ator que tantas alegrias nos deu. Gosto muito de cinema, mas costumo torcer o nariz para comédias. Confesso que resisti e demorei a assistir ao filme Minha mãe é uma peça. Quando assisti, fiquei de queixo caído. Que maravilha! Que show de interpretação! Hoje sinto-me órfão de Dona Hermínia.  

Depois de quase dois meses de luta, Paulo Gustavo morreu de Covid-19. Já são mais de 410 mil mortes no país. Esse número elevado deve-se em grande parte ao negacionismo de Jair Bolsonaro, que merecidamente recebeu de Trajano o apelido de “Capitão Corona”. Mal começaram os trabalhos da CPI no Senado, surgem provas contundentes sobre erros do desgoverno federal no combate à pandemia.

Em minha opinião, o esforço do governo Bolsonaro na produção e distribuição de cloroquina tem forte cheiro de maracutaia, para usar expressão preferida do ex-presidente Lula. Ontem (terça-feira), o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta afirmou que, durante reunião no Palácio do Planalto, foi apresentada uma minuta de decreto que alterava a bula da cloroquina, estendendo a indicação do remédio ao tratamento da Covid-19. A droga é indicada para malária, lúpus e artrite reumatoide. E não é recomendada pela OMS no tratamento do coronavírus. É ineficaz contra a doença.

Eis a versão de Mandetta: “Eu estive dentro do Palácio do Planalto quando fui informado, após uma reunião, que era para eu subir para o terceiro andar, porque tinha lá uma reunião com vários ministros e médicos que iriam propor esse negócio de cloroquina, que eu nunca tinha conhecido. Quer dizer, ele tinha esse assessoramento paralelo”. Segundo o ex-ministro, havia sobre a mesa um papel não timbrado de um decreto presidencial para que fosse sugerido que se mudasse a bula da cloroquina na Anvisa, incluindo a sua indicação para coronavírus.

Entre os participantes da reunião estava Carlos Bolsonaro, filho de Jair e vereador pelo Rio. Conta Mandetta que o pedido para alterar a bula foi negado pelo presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres. Ou seja, a proposta que constava da minuta de decreto foi rechaçada. Mandetta repetiu que Bolsonaro defendia o uso da cloroquina para o tratamento precoce, mesmo sem evidência científica.

Acontece que, mesmo sem evidência científica, o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército gastou mais de R$ 1,5 milhão para ampliar em 100 vezes sua produção de cloroquina. O laboratório do Exército firmou ao menos 18 acordos para compra de cloroquina em pó e outros insumos de fabricação, como papel alumínio e material de impressão, ao custo total de R$ 1.587.549,81. 

Cerca de 95% dos gastos foram para a compra, sem licitação, de 1.414 kg de cloroquina em pó. Levantamento do Repórter Brasil mostra que, em março de 2020, os militares compraram 414 kg de cloroquina em pó a R$ 488 o quilo. Mas em maio houve outras duas compras, de 1.000 kg no total, a R$ 1.304 o quilo ‒ valor seis vezes maior do que o cobrado um ano antes pelo mesmo fornecedor. A média de fabricação desde o início da pandemia chegou a 750 mil comprimidos por mês, num aumento de 102 vezes em comparação aos três anos anteriores.

O Ministério Público do Tribunal de Contas da União suspeita de superfaturamento nas compras do Exército. Em janeiro, o ministro Benjamin Zymler, do TCU, apontou ilegalidade no uso de recursos do SUS para o fornecimento de cloroquina para o tratamento de pacientes com coronavírus. E pediu explicações ao Ministério da Saúde. Como se sabe, não satisfeito em mandar produzir o remédio, Bolsonaro fez propaganda da droga em lives e até nas conversas com seu “gado” na porta do Alvorada. 

Diante das suspeitas do TCU e do relato de Mandetta, fica claro que a produção de cloroquina envolveu muitos interesses. A superprodução do remédio pelo Exército e a tentativa de alterar a bula ‒ denunciada agora por Mandetta ‒ indicam que a defesa do uso de cloroquina pelo “Capitão Corona” não foi fruto apenas de negacionismo. A CPI não pode perder tempo. Está na hora de seguir o dinheiro (follow the money, em inglês). Rolou muita grana na venda de insumos e na produção do remédio. Se houve aumento abusivo no preço na cloroquina em pó, deve haver superfaturamento na outra ponta. 

Como afirma o professor Leandro Pires Gonçalves, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminnese, “houve uma interferência direta do presidente e da cúpula militar nessa estratégia de colocar a cloroquina como o centro do enfrentamento ao coronavírus no Brasil”. Tudo isso cheira a maracutaia da grossa. Alguém faturou alto. Quem lucrou com isso? Quem está por trás do tal decreto?

Colunistas

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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