A mulher que nunca riu de uma piada

Poder fazer os outros rirem seria uma irônica vingança

Não tinha senso de humor. Sempre foi assim. Na infância, a milésima reprise de um episódio de Chaves era o suficiente para tirar seu apetite. Como poderia almoçar tranquilamente depois de ser exposta às desventuras de uma criança abandonada que mora em um barril e anseia por um simples sanduíche de presunto?

Depressão, cunharam leigos e especialistas. Passou a juventude medicada e ainda incapaz de rir de uma piada sequer. Mas seu problema nunca esteve relacionado à apatia, desânimo, baixa autoestima. Ao atingir a maioridade, cortou os remédios e tocou a vida, apesar da excêntrica miopia que a impedia de enxergar a graça de uma piada.

Em um aplicativo de relacionamentos, conheceu um técnico de informática que aspirava ser comediante. Quase fez com que ele desistisse de seu sonho, mas acabou por transformá-lo em um dos maiores humoristas de sua geração. Em suas tentativas inúteis de arrancar uma mísera risadinha de nariz de sua amada, aprimorou tanto o seu repertório que foi alçado ao status de gênio. Provocava o riso de milhões de pessoas, menos o dela. Passou a fazer graça do assunto e assim o caso da mulher que nunca riu de uma piada ganhou cada vez mais notoriedade.

Até o dia em que um homem bate à sua porta. Ela tenta convencê-lo de que a visita seria perda de tempo. Comediantes e neurocientistas do mundo inteiro se sentiram desafiados por ela e fracassaram em obter uma gargalhada ou diagnóstico que fosse. Mas o assunto é sério. Trata-se de um agente da inteligência do governo.

Há séculos, uma piada rascunhada em um papel emoldurado vem sendo mantida sob total sigilo em um bunker, como uma arma de destruição em massa. Ceifou a vida de todos os que entraram em contato com ela, sem exceção. Mas de nada adianta um artefato de guerra tão poderoso se nenhum ser humano é capaz de manuseá-lo.

Ela adentra o bunker sozinha, com a chave do cofre que protege o aparentemente inofensivo pedaço de papel. Agora é tomada por outro tipo de cegueira. Para alguém que sempre foi alvo de piadas por não ter senso de humor, o poder de fazer os outros rirem pela última vez se apresenta como uma irônica vingança. Finalmente entende que a vida é uma piada e morre de rir.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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