A última canção

RIO DE JANEIRO – No dia 11 de dezembro passado, o conjunto vocal Os Cariocas fez um show arrebatador no Centro de Referência da Música Carioca, na Tijuca. Centenas de pessoas se deixaram levar pela beleza de suas harmonias em clássicos da bossa nova, como “Minha Namorada”, “Só Danço Samba”, “Telefone”, “Samba do Avião”, “Águas de Março”, várias das quais eles foram os primeiros a gravar. Dias depois, seu fundador, pianista e líder, o maestro Severino Filho, sentiu-se mal e foi hospitalizado.

Nos quase dois meses que passou no hospital Quinta d’Or, em São Cristóvão, com um caso grave de trombose pulmonar, Severino aproveitou todas as visitas de seus colegas de conjunto, Eloi Vicente, Neil Carlos Teixeira e Fabio Luna, para repassar arranjos, afinar as vozes e treinar o seu próprio e exclusivo falsete, que era a marca dos Cariocas. Médicos e enfermeiras do Quinta d’Or lhe eram gratos por encher o hospital de música e, aos 88 anos, dar tal exemplo de força para os outros pacientes.

Nem a amputação de uma perna, a que foi submetido em fevereiro, o abateu. Em nenhum momento imaginou que aquilo o afastaria do piano. Com a prótese que lhe seria providenciada por sua filha, a atriz Lucia Verissimo, ele se habituaria a tocar de pé ou aprenderia a pressionar os pedais com o pé esquerdo. E já se decidira por uma clínica de fisioterapia para quando saísse do hospital –uma clínica com uma sala de ensaio para Os Cariocas.

Aliás, no sábado último, ele marcara com os rapazes um ensaio para esta semana. E, para começarem a aquecer as gargantas, propôs-lhes que cantassem ali mesmo “Ela é Carioca”, feita por Tom e Vinicius para Os Cariocas. Foi a última canção que ele ouviu –e cantou.

Foi também a última canção dos Cariocas. Contra sua vontade e a de todos nós, Severino nos deixou na terça-feira.

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Ruy Castro – Folha de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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