A um passo do abismo

Não precisa ser jurista. Basta saber ler para entender o que diz a Constituição Federal. E o § 4º do artigo 57 é de clareza meridiana – como dizem os antes mencionados juristas – ao estabelecer que, no primeiro ano da legislatura (período de quatro anos), deputados e senadores elegerão as respectivas mesas diretoras – e, nelas, a presidência de cada uma das casas legislativas – “para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. Mais claro do que isso, impossível, sem margem para malabarismos interpretativos.

Não obstante, o Supremo Tribunal Federal, a Excelsa Corte de Justiça do país – ou seja, acima dela, só Deus –, esteve a um passo de cometer crime de responsabilidade. Isso porque o controvertido ministro Gilmar Mendes, com o propósito de agradar os atuais presidentes da Câmara de Deputados e do Senado Federal, desenvolveu um esdruxulo entendimento, segundo o qual a proibição da reeleição não é cláusula pétrea da Carta Magna e, por isso, a vedação poderia ser entendida como permissão. Pelo raciocínio de s. exª., a Emenda Constitucional nº 16, ao instituir a possibilidade de reeleição para cargos do Executivo, poderia ser estendida ao Legislativo, posto que algumas normas constitucionais devem ter “plasticidade” para permitir novas interpretações.

Quer dizer, extraiu da Constituição Federal o que ela não tem. Ou, como bem frisou a professora Eloísa Machado de Almeida, da FGV, garantiu que a Constituição “não diz o que diz”.

O pior é que o desastrado voto de Gilmar foi acompanhado pelos seus pupilos Toffoli, Lewandowski, Moraes e o recém chegado Nunes Marques, o homem do Messias, indicando um placar inicial de 5 x 0 em favor da tramoia.

Felizmente, havia outros votos a serem dados. E os ministros Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Rosa Weber, Luiz Roberto Barroso e Edson Fachin recuperaram a razão da Corte, pondo ordem no julgamento, barrando a escandalosa decisão e impedindo o desmantelamento do Supremo. O resultado final foi de 6 x 5.

Esse placar, mesmo que tenha salvado o STF, causou certo mal-estar na Corte e teria acirrado as relações entre os ministros, uma vez que o presidente Fux, segundo consta, se comprometera a seguir o voto de Gilmar Mendes. Isso teria também orientado o voto do ministro Alexandre de Moraes. Ou seja: o ambiente que já não era dos melhores, piorou muito. Ali, os egos se sobrepõem uns aos outros e a disputa resvala para o lado pessoal.

Não é de hoje que o Supremo Tribunal Federal vem se desgastando perante a opinião pública. Muitos de seus integrantes, encantados com a notoriedade que lhes dá o cargo, deixaram de ser juízes para adentrar o perigoso campo da política, legislando e ditando normas de conduta para os poderes Executivo e Legislativo. Com isso envergonham a nação.

Mas não são só os membros do STF que têm enodoado a toga. O pessoal do STJ e dos tribunais estaduais contribuem destacadamente, sob as asas protetoras do Conselho Superior de Justiça. Uma de suas especialidades, como se sabe, é encontrar as chamadas “brechas legais”, através das quais conseguem driblar o limite salarial imposto pela Constituição Federal e aumentar seus rendimentos e vantagens, sem nenhum constrangimento ou peso na consciência. E sem qualquer desconto previdenciário ou tributário, já que a remuneração passa a chamar-se “verba indenizatória”. Essa prestidigitação confere aos ministros do STJ um “abono permanência”, um auxílio-mudança e outras vantagenzinhas ditas “pessoais”. O mesmo acontece nas cortes estaduais. Em algumas delas, chegou-se a criar um “auxílio-escola”, destinado a beneficiar mensalmente os filhos e netos dos magistrados, ainda que matriculados em instituições públicas.

Por isso, quando juízes fazem cumprir a lei, como aconteceu no STF, no recente episódio, comemora-se.   

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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