Ah, o Judiciário…!

Esse eu conheço bem. Por dentro e por fora. Da cútis ao intestino. Sou bisneto, genro, sobrinho e primo de juízes. Quem não seguiu a magistratura, esteve no ministério público, como meu pai e outros tios e primos. E eu estive lá dentro durante 35 anos. Convivi com muita gente séria, decente, competente, de saudosa memória, mas também conheci muito canalha de toga, gente repugnante, patife, que avilta e conspurca a profissão. Aposentei-me com duas convicções, que tive o atrevimento de revelar a um desembargador, que fora amigo de meu pai e de meu sogro e merecia a minha consideração: uma, o crime compensa; outra, Justiça não existe – é apenas um jogo de interesse, em que o interesse maior prevalece.

Depois, tive uma experiência de dez anos como advogado com alguma militância. E despedi-me da banca com outra certeza: a advocacia é a pior das profissões. O médico, o engenheiro, o professor ou o jornalista se acerta ou erra a responsabilidade é dele, que por ela ele responde e recebe os aplausos ou as críticas. O bacharel em Direito, ao contrário, pode ter capacidade, ser estudioso, dedicado e honesto, peticionar com correção e fundamento… Pouco importa. O que disse, o que escreveu vai ser lido (ou não), examinado e julgado por terceiros, que nem sempre são capacitados, aplicados, isentos e muito menos íntegros. Às vezes, são quase meninos sem experiência da vida, filhinhos de papai, que fazem carreira com a ajuda paterna. Ou um embolorado cidadão, repleto de vícios adquiridos durante a carreira, como a arrogância, a prepotência e a petulância. Mas têm a caneta nas mãos e decidem.

Vamos agora ao caso concreto: Fabrício Queiroz, ex-assessor do ex-deputado estadual e hoje senador Flávio Bolsonaro, é um malandro de carteirinha. Coordenou, durante anos, o esquema de “rachadinha” no gabinete do chefe, aquela prática em que se contrata funcionários e assessores e deles colhe-se parte dos salários para o deputado ou outros usos indecentes e criminosos, como financiamento de milícias, construções irregulares, transações imobiliárias ou aquisição de franquias comerciais.

Condenado pela prática de movimentação suspeita de dinheiro e posse de valores não explicados, Queiroz andou desaparecido, até ser encontrado escondido na casa de Atibaia do advogado do atual senador e preso. Sua esposa, também condenada e com ordem de prisão expedida, manteve-se acoitada, enquanto o marido era recolhido à penitenciária de Bangu, no Rio. Só que Fabrício Queiroz pode ter todos os defeitos, mas tem um trunfo que poucos têm: é amigo do rei. E de um rei categorizado, com assento no Palácio do Planalto. E o rei é amigo do juiz. O juiz é candidato a uma das futuras vagas no Supremo Tribunal Federal. Daí…

Depois de passar três semanas no presídio do Complexo de Gericinó, o policial militar aposentado foi agraciado pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, com o benefício da prisão domiciliar. Justificativa: além do risco do coronavírus, ele é portador de câncer e fora operado da próstata. Fez mais o ínclito ministro: estendeu a bondade à foragida esposa de Queiroz, a fim de que ela possa “dispensar atenções necessárias” ao marido – fato difícil de acontecer em favor de quem foge para escapar de uma ordem judicial. Até porque a razão exposta não se enquadra nas hipóteses previstas no Código de Processo Penal.

Interessante é que, durante o seu refúgio de mais de um ano na bonita e pacata Atibaia, Fabrício participou de churrascos, tomou a sua cervejinha e frequentou os restaurantes da cidade sem necessitar da ajuda da mulher.

Mais interessante ainda é que a decisão de Noronha contrariou pelo menos quatro deliberações anteriores dele próprio, em pedidos com igual argumento.

A deliberação causou surpresa também ao relator do caso, ministro Rogério Schietti, posto que, segundo entendimento corrente no Judiciário, mesmo neste momento de crise sanitária, devem ser mantidas as prisões imprescindíveis para a garantia da ordem pública e da ordem econômica, da instrução criminal e da aplicação da lei penal. É o caso de Fabrício Queiroz e de Márcia Aguiar.

Só que esse Queiroz não é um Queiroz qualquer.

P.S. – E nem entrei na discussão do processo no TJ/PR contra o desembargador José Maurício Pinto de Almeida, um dos mais competentes e decentes membros da Corte estadual. Aliás, é justamente por isso que ele está sendo processado.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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