Amnécias

Não nos lembramos, não nos lembramos mais e – pasmem – não nos lembramos mais nada, sequer o nome desta ilha aqui, habitada de morcegos e falcões e aonde chegamos, pelo passado, num certo mês – de que incertos dia e ano que o Tempo comeu? – nós os despejados na praia pelas galés dos implacáveis navegadores de Hérida.

Aqui nos deixaram, na praia deserta, tempo o bastante para que fôssemos todos desembarcados. E, não sem dificuldade, foi o que fizemos: nós e os nossos pertences, ou os pertences com que nos privilegiaram os irascíveis nautas.

Então nos ocorre aqui em Amnécias, nome que demos à ilha para, quem sabe, nunca mais esquecê-la, nos ocorre nutrir profundo amor ao promontório de Larionne, por exemplo, como se ele nunca jamais tivesse saído de nós. No extremo sul da praia que apelidamos de a praia dos Deserdados, imponente, ele, o promontório, se ergue do chão.

Ainda que só pedras, e nuvens sobre os cumes feito esgarços chapéus, sentimos com uma intimidade exclusivamente nossa, e intransferível, que o promontório de Larionne sempre foi a nossa casa.

Vivemos muito confusos aqui em Amnécias. Baixo detalhe insidioso: não nos cansamos de lembrar; e lembramos todas as horas do dia e todos os minutos das horas, a fim de não cairmos na mortal cilada de esquecer tudo de novo – para sempre. E outra vez.

Mas como para todas as coisas, à exceção da morte, sempre nos surge, aqui em Amnécias, em Trezia Menor ou em Ourissas, ou em qualquer ilha, uma forma de nos salvarmos delas, ou de nós mesmos, confiamos, junto ao promontório de Larionne, ou mesmo frente ao largo mar da praia dos Deserdados, que um dia vamos nos lembrar de tudo e de todas as coisas. Tivemos filhos? Onde nossos pais? Em que perdida ilha quem sabe o aguilhão do amor, esta facada?

Mas enquanto isso não ocorre, andamos de um lado a outro da ilha, em busca de nossos despojos, qualquer pista que nos delate quando foi que aqui aportamos a primeira vez. Às vezes sucede nos lembrarmos de um rosto, uns cabelos, a insolência nos gestos de uma mulher. Mas tudo se converte em esmaecidos retratos que logo a água do mar apaga, posto que grafados na areia, justo ali onde, descalços, corremos a ver o que seja. Entretanto, nada não é mais. Ou nem nunca foi nessa ilha onde vagamos, puros fantasmas de uma perdida glória onde, quem sabe, existimos um dia – vivos e inteiros, cheios de esperança para com o futuro, justo porque só goza de futuro quem sabe de seu passado e faz severo acordo com o presente, minúcia e gozo – brinquedo arisco que nos foge entre os dedos. Do mesmo modo a areia escorre pelos dois lados da concha de nossas mãos.

Isso. É isso. O presente desmemoriado, e carregado de estrelas, é o que nos mantêm prisioneiros de Amnécias, isto quando um de nós não se atira, suicida noturno, ao grosso mar, atrás de lembranças, mesmo as mais vagas e as mais aéreas, não importa a que distância do horizonte.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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