Todos beberam do Angeli

No começo de 2007, recebi uma ligação do editor de arte da “Folha de S. Paulo” à época, Fábio Marra, pedindo algumas charges políticas para avaliação. Eufórico, trêmulo e sem a mínima esperança de algo acontecer, mandei. Outros cartunistas também receberam essa ligação. No dia seguinte ele retornou: “Parabéns, você foi escolhido para cobrir as férias do Glauco e do Angeli“.

Como nos desenhos animados, meu queixo caiu até o chão e meus olhos saltaram do rosto como duas trombetas medievais. Por algumas horas, fiquei amortecido pela incredulidade, paralisado pelo medo e inebriado pela possibilidade de publicar charges na mítica página 2 da “Folha”, enquanto duas das minhas maiores referências de vida tirariam alguns dias de folga.

“Besta quadrada”

O Angeli e o Glauco, junto com a Laerte, foram mais determinantes para mim do que todos os anos em que passei nas escolas, durante aquele período apocalíptico da pré-adolescência. Para muitos professores daquele tempo, desenhar era coisa de aluno vagabundo. Preconceito recuperado agora por essa direita reacionária que emergiu das trevas. Mas o Angeli me mostrou que não. Bem, não exatamente. Desenhar era uma maneira de entender e tentar mudar essa “besta quadrada” chamada ser humano.

A “Chiclete com Banana”, revista de quadrinhos editada pelo Angeli de 1985 até meados dos anos 1990, levou toda a minha inocência para o ralo. Lá tinha tudo o que um desenhista de 12 anos precisava: quadrinhos, charges, cartuns, fotonovelas, sexo, drogas, rock and roll, política, música e muita, muita galhofa, como eles chamavam.

Descobertas

Enquanto na escola queriam que eu lesse José de Alencar, na “Chiclete com Banana” eu descobria Bukowski, Jack Kerouac e Art Spiegelman. Na escola queriam que eu cantasse o hino; na “Chiclete” descobri que o Sarney e toda a ditadura militar não prestavam; na escola eu tinha que saber os afluentes do rio São Francisco e eu só pensava em Rê Bordosa, Mara Tara e no “peru do Policarpo”.

E se você entende o espírito da revista, não fica nessas referências para sempre. De Bukowski você passa para John Fante, de Art Spiegelman para Primo Levi e de Jack Kerouac para Hemingway. E assim vai construindo uma cadeia de referências que acabam por formar uma visão de mundo crítica, original e fundamentada.

Claro, você poderia também sair de José de Alencar para Machado de Assis e Nelson Rodrigues, mas ajudaria muito se esses textos fossem ilustrados pelo Robert Crumb ou pelo Marcatti.

Edição 13

Certa vez, na sala de aula, um professor tomou de minhas mãos a edição 13 da “Chiclete com Banana”. Um crime sem possibilidade de fiança. Disse que só devolveria se eu fosse buscar no gabinete do diretor. Anos depois, consegui comprar num sebo essa edição que me faltava.

No dia em que minha primeira charge foi publicada, comprei dois exemplares da “Folha” na banquinha de uma esquina perto da UFPR. Abri com medo de ter acontecido alguma coisa, tipo o desenho sair de ponta cabeça ou mesmo nem ter saído.

Ao contrário das altas probabilidades de dar errado – como quase tudo na minha vida –, a charge deu certo. Ela era ok. As cores ficaram legais. Foi um dos dias mais felizes da minha vida. Porém, a felicidade não era completa por um certo receio que carcomia meu estômago: o que o Angeli e o Glauco pensaram em ver um ladrão entre dois cristos publicando no Olimpo sagrado das charges políticas? Talvez fosse melhor nem saber.

Fobia

Encontrei o Angeli duas vezes na vida, nesses salões de humor onde cartunistas desfilavam como num festival de carros importados. Acontece que eu tinha a mesma fobia de Emmeth Ray – o hilário personagem de Sean Penn em “Poucas e boas”, de Woody Allen – quando encontrava Django Reinhardt. Ficava paralisado, mudo e com um desejo enorme de fugir para Tombuctu.

Em 2008, o Marra me ligou de novo. Outro processo de seleção para escolher o chargista que cobriria as férias dos dois monstros. Fui escolhido de novo. Então o Marra me liga e diz as melhores palavras do mundo para um cartunista: “Vamos assinar um contrato?”.

Agora, eu era colega de espaço do Angeli, do Glauco e do Jean Galvão. Eu era o Nanico da turma.

Na última quarta-feira (20), o Angeli deixou definitivamente de desenhar para a “Folha”. Vocês devem ter lido por aí os motivos. A “Folha” sem o Angeli é como a “The New Yorker” sem cartuns.

Angeli é daquela espécie de cartunista que só existe no Brasil, como Millôr Fernandes e Laerte. Por sinal, foi Millôr quem criou o anagrama definitivo para o Angeli: genial.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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