Nelson escrevia sobre o que mais temia: o recalcado em nós

O desejo, a traição, a culpa e o ódio, todos elevados às mais altas potências

Quem leu “O Anjo Pornográfico”, excelente biografia de Nelson Rodrigues, escrita por Ruy Castro, deve se lembrar do trecho mais bonito do livro, quando termina o terceiro ato da peça “Vestido de Noiva” e a plateia fica em silêncio sepulcral. Naquele momento, Nelson, que tinha escrito a peça na tentativa desesperada de sair da miséria que assolava sua família, tem certeza de que fracassou. É quando começam a aplaudi-lo freneticamente, e a noite termina com o dramaturgo sendo ovacionado.

O cronista que melhor escancarava as hipocrisias da burguesia carioca passou um tempo tentando convencer diretores brasileiros a montarem seu texto, mas seria pelas mãos do polonês Ziembinski, com o grupo carioca Os Comediantes, que essa obra espetacular (e que melhora a cada vez que você lê o texto) marcaria para sempre a história da dramaturgia, dando início ao processo de modernização do teatro brasileiro.

Em 1943 os personagens Alaíde, Madame Clessi, Lúcia e Pedro jogaram luz nos desejos mais obscuros e vexatórios daquela classe social específica que pagava com gosto para ser ridicularizada no palco. Vaidosos que eram, os holofotes os faziam, acredito eu, se sentir no palco.

A tragédia é dividida em três cenários que representam a jornada caótica e inconsciente de Alaíde: plano da realidade, no qual a protagonista está desacordada no hospital; plano da alucinação, no qual faz uma espécie de terapia com a falecida prostituta Madame Clessi e tenta se lembrar da sua relação com o marido Pedro e a irmã Lúcia; e plano da memória, no qual mistura lembranças do passado com notícias que leu ou imaginou.

Apesar de a trama lembrar demais o que acontece com a nossa mente quando deitamos em um divã, não há indícios de que Nelson Rodrigues lia psicanálise –o que sabemos sobre a relação do autor com a obra freudiana, segundo a psicanalista Fernanda Hamman, especialista na obra do dramaturgo, é que ele falava mal de Freud e considerava suas ideias entre tolas e perigosíssimas.

O fato é que Nelson escrevia sobre o que mais temia: o recalcado em nós. O desejo, a traição, a culpa e o ódio, todos elevados às mais altas potências.

Em determinado momento, Madame Clessi, a prostituta que representava uma vida livre e foi morta exatamente por isso, pergunta a Alaíde quem é, afinal, a mulher de véu que comete o crime. Seria a própria Alaíde, que não suportava mais um marido tão bonzinho e até desejava morrer jovem e bonita? Seria a sua irmã, que independente do homem em cena (e eles têm todos o mesmo rosto), precisava destruir a alteridade (principalmente quando o outro lhe servisse também de espelho)? Misturando elementos de casamento com velório (velas, flores, marchas), Nelson deixa bem clara a sua ideia de que formar uma família era mandar definitivamente a pulsão de vida para o cemitério.

Nesse texto, o véu de todo o fingimento para viver em sociedade é desnudado. Talvez essa seja a obra mais importante de Rodrigues, sobretudo por representar a grande virada em sua carreira.

Acusam Nelson de misógino com razão (é só ver suas entrevistas), mas qual dramaturgo, ainda mais naquela época, deu tanto protagonismo aos quereres, aos anseios, aos sonhos e às lubricidades de uma mulher de verdade?

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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