Aquele mamão mofado

Fui reunir as crônicas para ver se lanço um livro novo e ganho um cascalho extra neste fim de ano. Da tela, vinha um estranho cheiro de fruta podre. As crônicas que escrevi ao longo do ano agora apodreciam no monitor como aquele mamão que comprei achando que seria uma boa ideia passar a comer mamão e agora o mamão parece um quadro de Romero Britto, amarelo, laranja, azul e roxo.

Resolvi que a crônica de hoje seria anacrônica: desengajada, despropositada, imperecível. Uma crônica que não fosse um mamão, mas uma margarina –já perceberam que aquilo não estraga nunca?

Sento a bunda na cadeira decidido a escrever sobre amor, ou coisa mais leve. O telefone toca. Se você acha que as pessoas pararam de ligar umas para as outras, experimente tentar escrever uma crônica. Do outro lado da linha, descubro que meu amigo Cadi, artista de rua e professor de ioga, foi espancado por um segurança enquanto tocava flauta no Metrô. Tenho que escrever sobre isso, penso. Cadi me explica que quem julga se os artistas de rua podem continuar se apresentando na rua é a PM. E quando um artista de rua trabalha criticando a PM? Pois é. Não trabalha. Penso no Tico Bonito, palhaço preso pela polícia do Paraná, polícia essa que batia em professor, e agora está diversificando… Sai dessa, bicho. Despolitiza, cara. Olha o mamão.

Faço um café e vou até a janela. Imagino que é isso que os cronistas fazem: sentam-se à janela –assim mesmo, com crase e ênclise. Eis que Rubem Braga, nos céus, atento às janelas, manda um presente do além e ouço, ao longe, um sabiá –quer dizer, aquilo que na minha ignorância ornitológica chamo de sabiá, só porque está cantando. Penso que seria lindo saber mais sobre sabiás.

Habemus crônica. Vou escrever sobre a vila onde moro: cheia de cachorros, donos de cachorro e, aparentemente, sabiás. Pergunto à vizinha, que passeia com seu lindo vira-lata perneta, se aquilo que está cantando é um sabiá. “Não, isso é o canário do vizinho, ele mora numa gaiola, não tá cantando, não, ele tá é chorando, tá berrando por liberdade, isso sim”, e diz que eu preciso escrever sobre isso, e poderia ser uma bela metáfora para a redução da maioridade penal, ela diz, que acaba de ser aprovada, mesmo ilegal, imoral e ineficiente… Obrigado, vizinha. Você tem razão.

Esfomeado, recorro ao mamão multicolor. Esses orgânicos duram ainda menos. Mas, ao menos, penso, são mais saudáveis. Talvez exista alguma ligação entre o saudável e o perecível, consolo-me, enquanto corto as partes mofadas do meu mamão romero-britto. Talvez.

gregorioduvivierGregorio Duvivier – Folha de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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