As belas e as feras

Contardo Calligaris – Folha de São Paulo

“A Bela e a Fera”, de Bill Condon, é ótimo para crianças, mas, pelo que eu vi, seu grande sucesso é com os jovens casais de namorados.

Durante o fim de semana, as sessões 3D, Imax e sala VIP estavam lotadas com notável antecipação –ou seja, o filme é um programa. E a prova da idade média da plateia foi, na minha sessão, a quantidade de vizinhos que ligavam o celular e ficavam teclando durante o filme. Além dos óculos de três dimensões, deveriam distribuir, nos cinemas, aqueles tapa-olhos laterais que foram inventados para os cavalos não se assustarem com movimentos nas margens de seu campo de visão.

Enfim, entende-se facilmente que “A Bela e a Fera” seja programa para jovens namorados: é o sonho de um amor que teria o poder de redimir, de transformar o outro e de torná-lo mais amável –essa transformação sendo, aliás, uma justa recompensa para quem aguentou amar o monstro.

Pensando bem, é curioso que essa ideia tenha tanto sucesso, porque, na realidade, não é isso o que acontece com mais frequência: a gente pode se casar com uma fera, esperando que ela contenha um príncipe escondido, no entanto, a regra é que a gente casa com príncipe (ou princesa) e depois disso descobre que havia nele (ou nela) uma fera escondida.

Enfim, voltemos à “A Bela e a Fera”: todos gostaríamos que nossos beijos amorosos tivessem o poder de quebrar o casulo e liberar borboletas maravilhosas.

É verdade que, na modernidade, o amor é o grande fator das mudanças. É por amor (o amor de Romeu e de Julieta) que Montecchios e Capuletos esquecerão ódios e vendetas. É o amor que autoriza qualquer um a se juntar com outro de uma classe ou de uma religião diferentes. É também do amor (de transferência) que tiram sua força as terapias pela palavra (e, em parte, a própria medicina).

Em suma, como cantavam os Beatles, o amor é tudo de que precisamos, mas, atenção: não é por isso que, no amor e pelo amor, seja garantido que a gente consiga transformar o outro. Recomenda-se, aliás, NÃO se engajar numa relação com a ideia de que, graças ao nosso amor, o outro será transformado ou mesmo, mais modestamente, que seus defeitos se amenizarão.

Ao contrário, regra quase absoluta: se e quando o amor parece ter transformado seu ente querido (do jeito que você esperava), prepare-se para assistir à volta inexorável de quem o outro sempre foi e, de fato, nunca deixou de ser.

A sensação frequente, que mencionei antes, de que casamos com príncipes e acordamos na cama com feras, tem sua origem justamente neste fenômeno: o amor nos vende a ilusão de que, graças a ele, as feras se tornam príncipes, mas, de fato, só há príncipes temporários.

Diante dessa regra, o que fazer? A saída consiste em amar o outro como ele/ela é –ou seja, amar a fera por ela mesma. Essa é a melhor parte da história de “Bela e a Fera”: para conseguir um príncipe, é preciso amar uma fera.

Para uma versão mais adulta, e francamente divertida, da história da bela e da fera assista a “Estranhos.com”, de Laura Eason (com os ótimos Deborah Evelyn e Johnny Massaro, direção de Emilio de Mello). A peça acaba de estrear no Teatro Vivo, em São Paulo, e a montagem brasileira é melhor do que a de Nova York, de dois anos atrás. Ambos os protagonistas de “Estranhos.com” são dominados por uma das ambições mais atormentadas e devorantes (a de escrever e ser lido). Claro, com essa ambição, o amor mal compete.

Quem assistir a “Estranhos.com” escolherá o fim que ele prefere e decidirá se o amor entre as duas feras tem uma chance de continuar ou não.

Eu acho que continuará, porque acredito que o amor se torna mesmo possível justamente quando ambos os amantes descobriram e sabem que o outro não é um príncipe, mas uma fera.

No filme de Condon, uma frase de Bela (não sei por quê, imaginei que fosse um caco de Emma Watson) deixa pensar que, para ela, talvez a fera fosse mais interessante do que o príncipe.

Em suma, Bela gostou da Fera (sem esperar que um príncipe se escondesse lá dentro), e a Fera aturou o bovarismo intolerável de Bela e das histórias de amor que ela lê. Da mesma forma, cada protagonista de “Estranhos.com” sofreu pela ambição do outro, que é mais forte do que o amor.

Mas, justamente, o amor só tem uma chance de funcionar sem idealização, ou seja, quando os amantes acabam gostando do que há de pior no outro.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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