As delícias do Céu que tem perto de casa

Dante imaginou o Inferno como um lago gelado onde todos os sentimentos morrem. Sartre pintou o Inferno como lugar exíguo, fechado, com duas mulheres e um homem. Inferno é o sufoco de uma relação. Imagino Inferno como Sufoco Gelado. Não tem espadas de fogo, línguas flamejantes, espetos incandescentes, nem carrancas expelindo pus, rios de lavas, gritos de horror. Nenhuma imundície rolando ou membros arrancados, pestilências e água escaldante ou câmaras de podridão ou tortura. Tudo isso é muito humano.

Calculo o Inferno apenas como Sufoco Gelado subindo dos pés à cabeça. Sinistramente, silenciosamente, congelante. Depois, nada. Silêncio e névoa.

Se dizem que o Paraíso é o dolce far niente, o nirvana… o Inferno é o não poder fazer. Querer e não poder. Paralisia gelada. A indiferença do outro lado.

Vá procurar os caminhos do Céu e do Inferno em todas as gravuras e pinturas antigas. Bosch fica parecendo jardim de infância perto das orgias dos sites da internet. Bruegel é santo padre. Nos sites tudo muito colorido, explosivo e humano

Pobre Corão que descreve o Céu como lugar onde abundam jardins, fontes, vinho e virgens encantadoras. Tudo é permitido, mas tudo isso é muito humano. Apenas delícias que eram proibidas aqui na Terra. Permitir lá, num lugar onde ninguém tem inveja, é pregar no deserto. No Inferno, encontrar demônios alados é apenas figura de retórica. Aqui já temos todos os demônios. O nosso Céu é pegar o proibido aqui mesmo. Quem quer ser Caronte e receber a moeda da boca do cadáver? No entanto, a Felicidade na Terra é essa. Cada moeda que pegamos para nós, vem da boca de um morto.

O Apocalipse mesmo é muito humano. Um homem-bomba com carga suficiente para detonar a Terra inteira. Mas o sussurro do gelo sufocando é imbatível. Articulações enregeladas, alma dura, pensamentos formando estalactites. O frio, o frio, o frio… e o nada.

*Rui Werneck de Capistrano é entregador de gelo em barras

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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