Baixando de bike no barro do Bigorrilho

Eu tinha dezesseis anos, uma tarde banal de domingo no inverno, ia pegar o ônibus para o Clube Curitibano quando aquilo me bateu feio no peito. Não estava preparado. Não sabia o que era. Mas doía. Demais. Fui apresentado: “Muito prazer, angústia existencial.” Só depois, lendo Sartre e Camus, juntei o nome à pessoa. Pegou forte.

No barzinho da sinuca no quarto andar do Curitibano, o misto quente e a Coca Cola tinham perdido todo o sabor. Dei uma desculpa esfarrapada à turma e voltei para casa. Domingo fim de tarde tinha o programa de jazz do Virmond. Parecia proposital. Billie Holiday, do fundo de sua Angst, cantou para mim Gloomy Sunday. O folclore jazzístico apelidou a música de “a canção do suicídio húngaro”, em função da nacionalidade do compositor.

Sunday is gloomy, my hours are slumberless/Dearest, the shadows, I live with are numberless (Domingo é tétrico, minhas horas insones/Querido, as sombras em que vivo são intermináveis.)

A noite de agosto chegou rápida, tenebrosa, garoa fina e umidade glacial, pegajosa. Nossa casa era onde terminava a Alameda Carlos de Carvalho, uma alameda sem nenhum pé de árvore. Eu precisava de um antídoto contra aquele veneno desconhecido e insidioso. Peguei uma velha bicicleta enferrujada que já conhecera melhores dias e parti para os pagos do Bigorrilho. Passava – só eu na rua – pelas casinhas iluminadas, aquelas pessoas na sala de jantar ouvindo rádio, ainda não havia TV, protegendo-se umas às outras da solidão.

Além da minha casa, as ruas não eram calçadas, barro puro. E as ruas do Bigorrilho eram ladeiras assassinas, com ângulos de 45 graus ou mais. Montanhas-russas, tobogãs de lama. Ignorava meu potencial atlético, mas encarei alguns declives assustadores. Depois da queda livre, havia o esforço de subir a pé com a bicicleta para empreender um novo mergulho. Me empolguei pela brincadeira.

Em Caiobá eBaixando de bike no barro do Bigorrilhou praticava um exercício zen de saltitar entre as pedras à beira-mar, você não dava margem para o desequilíbrio, pairava praticamente o tempo todo entre uma rocha e outra. Fiz coisa parecida nos fundões do Bigorrilho.

Voltei para casa todo molhado, enlameado, mas com a alma lavada. Foi assim que comecei a sobreviver aos domingos que, para mim, ainda são terríveis.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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