Big techs como aliadas da pandemia

De um modo geral, não temos tempo para comemorar nem para lamentar erros: há sempre uma tarefa à frente. Em maio, tiro férias. Não paro de escrever. Na verdade, dedico-me a escrever bobagens, ler livros inúteis e trabalhar imagens sem nenhum valor comercial.

Continuo com olho no mundo.

OMS suspendeu a emergência internacional, embora a pandemia não tenha acabado. Bill Gates é um bilionário, sou apenas um remediado, como se diz em Minas. No entanto concordo plenamente com ele que é necessário trabalhar para evitar a próxima pandemia.

Gates propõe uma estrutura mundial de vigilância que custaria US$ 1 bilhão por ano, um décimo dos gastos em defesa, uma gota no oceano de trilhões de dólares perdidos com uma pandemia.

No livro “Como evitar a próxima pandemia”, ele fala na necessidade de haver um bom número de pessoas que acordam todas as manhãs pensando no tema. Não é meu caso. Às vezes acordo de pá virada; às vezes, melancólico. Nem todas as manhãs dedico à humanidade.

Mas isso não significa que não possa ajudar. Nos meus 65 anos de profissão, nunca vi uma etapa tão produtiva do jornalismo como durante a pandemia. De modo geral, não temos tempo para comemorar nem para lamentar erros: há sempre uma tarefa à frente.

Escrevi um diário com mais de 250 entradas. Tornei-me mais aberto ao que C.P. Snow chama de terceira cultura: cientistas e divulgadores que aos poucos vão substituindo os intelectuais tradicionais, revelando alguns sentidos mais profundos de nossa vida, redefinindo quem somos nós.

Nossa batalha central foi combater o negacionismo e as fake news sobre vacinas. No caso brasileiro, elas nasciam do próprio governo. Essa luta, de alguma forma, continua nos dias de hoje. As big techs concentradas no lucro resistem a algum tipo de controle sobre as redes sociais. Algumas, como Google e Telegram, já levaram grandes pancadas financeiras na Europa.

Mas não desistem.

O Google no Canadá quer limitar as notícias de jornal apenas porque foi votada uma lei exigindo que pague direitos autorais a quem gastou dinheiro e suor para produzi-las. O Telegram costuma abrigar supremacistas brancos, neonazistas, bolsonaristas e tutti quanti. Resiste a colaborar com a democracia e, na verdade, a ataca de frente, ao mentir sobre o Projeto das Fake News.

Existe um ranço colonial nesse desprezo pela soberania brasileira. O Telegram pertence a russos que resolveram deslocar a empresa para os Emirados Árabes, em “busca de mais liberdade”. Com esse vínculo afetivo com a extrema direita mundial, custa acreditar que o Telegram não seja uma invenção dos magos que giram em torno de Putin.

A verdade para mim é que, sem combater as fake news, por meio das leis e da educação, não estaremos preparados para enfrentar a próxima pandemia, o próximo ataque às escolas, a avalanche de discursos de ódio que as redes despejam no país.

O Brasil precisa resistir em duas frentes. Aqui dentro, é necessário afirmar a soberania diante das big techs que decidiram se transformar num ator político. Lá fora, já que o presidente viaja com frequência, é preciso falar da necessidade de articulação dos diferentes esforços nacionais para controlar esse processo destrutivo.

Se as big techs já desprezam governos e democracias agora, o que não farão no futuro próximo quando desenvolverem seu mais poderoso instrumento: a inteligência artificial? Por isso, caro Bill Gates, temos de marchar juntos para deter a próxima pandemia, mas com um olhar bem mais além da saúde pública, um olhar para o processo mesmo que criou a sua e outras grandes fortunas.

A próxima pandemia pode nascer de um vírus respiratório. Existem algumas dezenas deles pedindo passagem. No entanto o vírus do lucro a todo vapor, sem pensar nas consequências humanas, pode acabar suplantando todos os outros. Na trincheira da comunicação, nossa tarefa é defender a vacina, que pode ser de RNA mensageiro, mas às vezes precisa ser também uma dose de democracia.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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