Bloco dos escangalhados & desvalidos

De vez em quando é bom vestir a fantasia

Abram alas para o Carnaval mais necessário da última década. Eu sei o que estou dizendo: sou de outros carnavais. E nunca antes vi passarelas, ruas e avenidas tão carentes de serpentina.

Comecei com um osso de galinha na cabeça, fantasiada de Pedrita num baile de clube. Adulta, me joguei no Carnaval da Bahia. Desfilei na Marquês de Sapucaí e no sambódromo de São Paulo. Gastei a sola nos blocos de rua do Rio de Janeiro. E, ainda que tenha visto dos mais belos tamborins, nada se compara à folia zarolha que vivi em São Paulo em 2015 e que está se repetindo agora por todo Brasil.

Em 2015, o túmulo do samba ainda se aquecia para a sua grandiosa ressurreição. Com um enfeite enjambrado na cabeça, cheguei na Ipiranga com a avenida São João sem esperar muito. O centro da cidade vivia um dos seus momentos mais miseráveis e decadentes, em que um assalto era mais garantido do que um tapa de lança-perfume ou um beijo na boca.

Agarrada à minha pochete dourada como a própria vida, vi despontar, entre os prédios pichados, um trio elétrico mirrado, seguido de um cortejo de igual improviso. Nada das fantasias majestosas que eu até então conhecia. Estavam todos vestidos de Como Dava: uma cueca de oncinha alçada ao posto de protagonista, um tridente comprado na esquina, um sutiã sobre o peito peludo, um babado qualquer para se fazer de rumbeira, uma corneta arranjada às pressas na rua 25 de Março. Sem corda, sem recuo, sem apoteose, sem boneco de Olinda, sem brisa, sem árvore, sem patrocínio, sem incentivo da prefeitura, sem policiamento, sem muitos decibéis, só com um estandarte capenga, tínhamos que arrancar daquele asfalto inóspito alguma alegria.

E ainda que isso não estivesse escrito em nenhum samba enredo, sabíamos. Sabíamos que tudo dependia da nossa energia. E foi com ela que avançamos cidade adentro e assisti àqueles quarteirões entregues à própria sorte se abrirem. Os rostos ressabiados aparecendo nas janelas dos prédios. Os fumadores de crack dando passagem e sacudindo seus magros quadris. Os moradores de rua despertando ao som do chocalho amarrado na canela. Nós com as mãos levantadas, cantando a todos pulmões para levantar a turba combalida. “Tudo isso é pra nós?”, os rostos incrédulos diziam, na folia mais singular da minha vida.

É esse Carnaval da ressurreição que estamos vendo de novo pelas ruas. Não só em São Paulo, mas do Oiapoque ao Chuí, no nosso grande Bloco dos Escangalhados e dos Desvalidos. Desde a ala dos Lesados pela Pandemia a ala dos Lesados pelo Ex-Governo, não há quem não tenha, em algum momento nos últimos anos, perdido o rebolado ou chorado como um Pierrot.

Que as sandálias de prata avancem por essa terra garimpada, dilapidada, contaminada, roubada, vandalizada, vilipendiada, depredada. Que pelo menos por alguns dias a gente volte a ser o que foi, acredite ser o que nunca foi ou sonhe ser o que talvez, quem sabe, com sorte, um dia seremos. De vez em quando é bom vestir a fantasia.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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