Brasil, meus parabéns, meus pêsames, sinto muito, não repara a bagunça e desculpe qualquer coisa

Não precisa recomeçar nada do zero, é jogar fora o presidente que já resolve muita coisa

Querido Brasil. Uau. Duzentos anos! Não é todo dia que um país faz dois séculos. Que época esquisita pra fazer um aniversário tão importante. Deus me livre de completar uma data redonda dessas no meio sendo assaltado dentro de uma UTI. Imagina que tristeza se deparar com um AVC e um assalto à mão armada no dia do seu bicentenário. Sinto muito. Já nem sei o que dizer: meus parabéns, meus pêsames, sinto muito, tamo junto, Deus é mais, não repara a bagunça, desculpe qualquer coisa.

Nem parece, aliás, que você tem essa idade toda. Talvez ano de país a gente conte diferente, tipo ano de cachorro. Se cada ano de país vale por um mês de gente, você tem só dezesseis anos. Faz sentido: não consegue se manter sozinho, sai tacando fogo em todo verde que vê pela frente, se apaixonou por um canalha que te trata que nem lixo.

Às vezes parece que você nem nasceu. Às vezes parece que você ainda tá pra ser inventado. Taí: bem que podiam te reinventar do zero. Aliás do zero, não. Dá pra aproveitar uma coisa ou outra.

Eu deixaria o caldinho de feijão. Joga tudo fora mas deixa o caldinho. E a farofa. Com ovo, com banana, com ovo e banana. O pastel com caldo de cana. O chorinho. Um chorinho específico: espinha de bacalhau. E também aquele outro chorinho: aquele que sucede à dose de mate, ou de cachaça. “Só um chorinho”. Acho que isso é invenção nossa. E também o hábito de tomar banho todo dia. E de escovar os dentes depois do almoço. O cafuné, e todas as outras palavras só nossas pra carinho: o dengo, o xodó, o chamego, a paquera, o namoro, o chêro.

Também queria pedir pra guardar o samba, o samba-enredo, o samba de roda, e a roda de samba, e as escolas de samba, e o samba-reggae, e e o forró, o frevo, o carimbó, o axé e o pagode baiano. Os blocos de carnaval. E os arraiás. E se tiver espaço guarda também o soneto da fidelidadeo poema de sete faceso galo tecendo uma manhã, a prosa toda do Machado, a morte da cachorra Baleia, a morte de Macabéa, a morte de Diadorim, a morte e vida severina, a morte e a morte de Quincas Berro d’Água.

Se possível vamos guardar o hábito da saideira ser por conta da casa. E o chope gelado, com colarinho grosso. E a empadinha, por favor. Não joguem fora a empadinha. De queijo, de camarão ou de palmito. E o empadão, claro. A goiabada cascão e o vira-lata caramelo.

Faz favor também de não jogar fora o pão de queijo. E não cometam a loucura de esquecer a paçoca. E sei que parece besteira, mas queria pedir pra não jogarmos fora os assentos acolchoados de privada. Só a gente que tem esse cuidado com as coxas numa hora tão delicada. E também as tampas de privada coberta por um bordado. Ninguém tem esse carinho por uma tampa de privada. E as comédias da vida privada. O filtro de barro São João. Coberto por um bordado. O prato âmbar. O estrogonofe com batata palha. A altinha, o bobinho, o gol a gol. O queijo coalho. E o Minas, e o da Canastra. O café do Caparaó. O sorvete de bacuri. O açaí na tigela. O bombom de cupuaçu. O arroz de jambu, o pato no tucupi, o feijão tropeiro e o arroz carreteiro. O grupo Corpo, o grupo Galpão, o Oficina, o Tá na Rua, o Olodum, o ilê, o Cacique de Ramos e o Cordão do Boitatá. E todos os morros, e todos os terreiros, e todos as nações indígenas, e quilombolas, e o SUS, e a Fiocruz, e o MST, e os Sescs…

Quer saber? Não precisa recomeçar nada do zero. Joga fora o presidente que já resolve muita coisa.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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