Cartas da Clausura – IV

Muito tempo atrás me consultei com um médico chinês. Mas não um médico chinês qualquer. O senhor devia ter sido colega de classe do Confúcio. Poderiam muito bem ter estudado na Universidade Imperial de Pequim, na cadeira Chás e Infusões – II . Falava pra dentro o anciãozinho. Eu só o entendi quando me pediu pra contar como havia sido meu dia. Mandei palavra pra fora da goela. Depois de uns 20 minutos de garganteação, ele se levantou com dificuldade, abriu a porta da sala, e me disse:

– Procura dicionário significado palavra dogmatismo. Retorno 15 dias.
Obedeci, consultei o Houaiss, e voltei na data aprazada. Nem sentei no tamborete e ele já mandou esta:
– Que coisa é dogmatismo?
E eu:
– O contrário de pragmatismo.
– Que coisa é pragmatismo? – perguntou.
– É viver de um modo prático, sem dogmas.
O china deu uma gargalhada gutural, socou a mesa, e gritou:
– Vai viver modo prático, vai! Não precisa remédio, vai embora!
Me mandei, inclusive sem pagar. E só escrevi este enorme nariz de cera pra dizer um troço importante. Se estamos escancarando o comércio em São Paulo e, por conseguinte, vamos arrear o popô num mourão (ops) logo ali adiante, por que não sermos pragmáticos e exigirmos uma segunda coisa: que reabram os parques e bibliotecas públicas logo de uma vez.

Preciso pegar dois livros fundamentais na Biblioteca Villa Lobos e nem o telefone atendem. Se é pra morrer de Covid, que fiquemos de pés juntos mais ilustrados. E, claro, sem dogmatismos.

Sabadão. Depois de muito tempo resolvi assar uma carninha na grelha de casa. O que mais me irrita nessas ocasiões é que sempre falta um item para acender o fogo. Foi espalhar o carvão e já tive que gritar: “não tem álcool!” Imediatamente apareceram na churrasqueira meus quatro filhos e a esposa, cada um com sua embalagem de álcool em gel nas mãos. Um minuto depois, o vizinho tocou a campainha e também foi logo oferecendo o seu Zulu 70 graus. Pandemia é tristíssimo, mas, como tudo na vida, tem um lado aproveitável.

Tirei um cochilo após o almoço dominical e sonhei que Abraham Weintraub acabara de ganhar o Nobel de Literatura. Seu discurso era comentado no mundo inteiro. Tanto pelo tema (a importância da valorização da sintaxe), como por ele ter sido o primeiro brasileiro a receber tão colossal honraria. O presidente Bolsonaro comparecia à cerimônia de entrega do prêmio e discursava em inglês, francês e alemão. Em seguida acontecia a apresentação da Osesp tocando Villa Lobos, Claudio Santoro e Guerra-Peixe.

Quando Weintraub recebia o abraço de Bob Dylan, senti uma pressão aguda nas costas. Era minha mulher me acordando. É isso que dá comer rabada com agrião depois das três da tarde.

Recebi a foto de um amigo jantando num restaurante no Rio. Ele estava de máscara, comendo com talheres de plástico, e foi examinado por um termômetro-pistola antes de entrar na cabine de desinfecção. Em cima da mesa havia sal, pimenta do reino e álcool gel. Mas, segundo ele, o petit gâteau estava divino.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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