Cartas do Bunker 16: Entre árvores e esquecimentos

“(…) Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos”.

(Passagem das Horas – Álvaro de Campos, 1916).

Todos os nossos deslizes de agora podem ser creditados na conta da pandemia? Desculpados ou perdoados como frutos das sandices que derivam da condição de isolamento? Tomara!

Algum legislador bem que poderia estabelecer tal autorização singela em lei, com as devidas ressalvas, claro: valeria apenas para casos de pequenas, saudáveis e simpáticas transgressões (ou digressões). Nada que colocasse em risco a vida e a integridade das outras pessoas, mas só, apenas e tão somente aqueles pecados inocentes – e outros nem tanto assim -, que não chegassem a ultrapassar a fronteira do ridículo… Desvirtudes materializadas em atos, pensamentos e palavras que não suscitam nenhum prejuízo a terceiros. Cuja abrangência se limite a, no máximo, atingir uma única vítima direta dessa infração perdoável, bem intencionada, e que até venha a assumir sua condição de ladina e cúmplice dessas traquinagens.

Na súmula da iniciativa em questão ou logo nos primeiros artigos do documento, caberia descrever e expor como objetos do regramento uma espécie de cobiça discreta, as gulodices de fácil metabolismo, a avareza nas palavras, com toda a sinceridade possível, cabível e plausível dos silêncios… Também vale aqui destacar que se trata das sem-vergonhices inofensivas, de preguiça travessa e teimosa em se desapegar do alheio, além de atrevimentos prazerosos e descabidos, que fazem a gente escorregar e levantar, ainda meio cambaleante e encabulado, torcendo para que ninguém na multidão tenha se dado de conta daquela situação.

É da vida! Só esta constatação já seria suficiente para suavizar as broncas e repreensões. Sim, repreensões, pois têm o peso e a gravidade de ocorrências quase infantis, que não demandam punições mais severas e que, no fundo, no fundo, extraem de nós um indisfarçável sorriso de conivência. Provocam compaixão, solidariedade e até algum agradecimento por nos fazerem, no meio de toda essa realidade confusa e violenta, lembrar que somos forjados naquela tal de natureza humana.

É da alma! Que sejam perdoados e não nos levem à fogueira inquisitória, consumidora da essência do ser, os nossos escorregões mais encantadores, delicados, íntimos e instintivos. Que nos permitam ao menos afirmar e reconhecer essas pequenas desobediências vexatórias, mas nunca desculparmo-nos por elas. Portadores de sentimentos, já temos para carregar e arrastar correntes pela eternidade afora essa dor da vida, aquela que “dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa”. E se a pena aplicada com maior rigor for a do banimento, do exílio, da perpetuação desse distanciamento social, que, então, nos deixem, como na “Passagem das Horas” de Álvaro de Campos, sair livremente para sermos selvagens, “entre árvores e esquecimentos”.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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