Chamas

Dentro daquela visão, estavam em meados do século XIX. O que aconteceu na época impacta ainda os encontros e desencontros da existência atual. Uma casa incendiada e o minúsculo fruto daquela união foi engolido por chamas que, descontroladas, romperam a segurança com que explodiam dentro do peito dele para, em ato criminoso ou de infeliz descuido, se desesperarem em labaredas enormes de culpas, de perdas e de abandonos. O sofrimento anestesiou as feridas que se entranharam nela e que verteram lavas de dores profundas, hemorrágicas, incandescentes. O sofrimento ansiava pela partida, por um respiro qualquer, longe da fumaça intoxicante da ira que flambava sua pele, deixando o ar impregnado do aroma etílico do remorso.

Nenhuma explicação diminuiria a culpa que ela lhe atirou com todas as forças que pode reunir em tal ação e nem retardaria a velocidade com que ele prontamente admitiu e aceitou as reações dela. Separaram-se sob o peso de uma pendência espiritual de magnitude incalculável e retornariam quando fosse possível colocar em teste os avanços no aprendizado de ambos, no perdão mútuo, de um para o outro e consigo mesmo, e na possibilidade de um resgate único, purificado na ardência de tamanhas dor e aversão. Eram muito apaixonados e tiveram o privilégio de viver aquele amor com a intensidade de um fenômeno da natureza, mas erraram na mão quando se sufocaram e se inebriaram também pelas incompreensões, vícios e equívocos do modo de vida da época, forjados no fogo dos seus costumes.

Por isso mesmo, os senhores do tempo e do destino impuseram à arrogância com que eles se fecharam para o mundo e se dedicavam única e exclusivamente, em pequenos descompassos, aos apegos erguidos pelos seus egos. Deveriam se desprender daquele amor mundano para aprender, com muita dor, a verdadeira arte de amar na sua natureza mais pura, saudável e edificante. As autoridades foram implacáveis na punição. O acordo prévio era que cultivassem a paciência, esperassem e progredissem suave e tranquilamente, antes do encontro consagrado para irradiar ao mundo a beleza e a extensão dos poderes do universo. Naquele instante, o mundo era um local inóspito para as aspirações desenhadas à transformação da realidade. Mas eles não conseguiram se conter e cederam aos estímulos do campo magnético para além do que o acordo estabelecido permitia, em arbítrio desafiador. Pagaram um preço altíssimo por aquela atitude afoita, atropelada. E ainda pagam por isso. Quando sentem a conexão, hoje, ela vibra com a bagagem de uma carga emocional antiga, de saudades estranhas e com o acúmulo de uma espera confusa, que atravessam planos existenciais, vidas inteiras, crenças, hemisférios e mundos…

Helena observa a chuva torrencial e constante. Descobriu que não via uma precipitação assim há muito tempo. Nem se deu conta, mas tinha se esquecido de como ela era: que cheiro deixava no ar, como lavava o chão, que sons marcavam sua presença e como sentia-se nesses dias, cujas horas passavam lentas, alternando as sensações de calor, frescor e de umidade na sua tarde distraída. Uma luz se acende na janela do último andar da fachada de um prédio, não muito distante dos seus pensamentos. Pode-se ouvir, escorregando pela fresta, o som da música clássica que atravessa os espaços e chega intacta, mansa e doce nos ouvidos dela. O toque instrumental embala agora uma Helena atônita pelas revelações que despertam uma clarividência maluca, nervosa e inconcebível na sua racionalidade, mas que repousam plenamente aceitável e audível nos anúncios que sua intuição grita e insiste em alardear para acordar a consciência.

Mágicas que somente quando são colocadas na conta do poder divino que nos rege é que são possíveis de serem assimiladas. Já estivera a ponto de perder a fé nos esclarecimentos daquela jornada, até que, novamente, por meio de uma manifestação da natureza, esculpida pelos traços e conspirações do universo, um sopro ciclônico jogou tudo para o ar e recolocou aquelas duas almas, ao mesmo tempo, em uma esquina onde seus caminhos puderam voltar a se cruzar para, enfim, acertarem as contas com o passado.

Não foi à toa que um fenômeno poderoso e amedrontador veio girar as chaves das percepções. Há um propósito: lembrar e reanimar nos dois a consciência não só da pequenez, mas como da fragilidade e da finitude da vida; Deveriam exercitar com humildade as suas insignificâncias para poderem refletir o brilho do universo e somar, com tantas outras almas nessa missão privilegiada e extenuante, a grandiosidade da obra imaterial que os une e que os aterra. Quando aprendessem a se amar, enquanto centelhas divinas e não deixassem de ser reféns de apelos egoístas, aprisionadores e efêmeros, estariam preparados para o salto definitivo e para se lançarem ao abraço universal, por impulso de suas miseráveis, mas potentes chamas apaixonadas… Livres para aquele aconchego, acolhida e livres também para se moverem rumo ao prometido retorno das duas almas pródigas para o calor e o conforto do lar.

Precisavam compreender a renúncia – e o amor que de fato ela expressa e expande – no contexto dos propósitos da elevação da vibração positiva à edificação dos novos tempos, no ambiente desta civilização e para a evolução que o momento atual demanda e já permite favorecer. Sem medos, imposições, cobranças, disfarces ou maquiagens, apenas confiando nos direcionamentos edificantes. Só quando eles naturalizassem esse entendimento, praticassem o desapego e despertassem para as verdades singelas e intuitivas que ele revela, as chamas internas poderiam voltar a queimar livres, com todo vigor e força, para contarem uma nova história, ofertarem uma nova chance a eles e para irradiarem no horizonte um amanhã promissor, semeado no desprendimento e no poder de contágio dos vapores e calores dos afetos incondicionais.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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