Mania ou alegria?

Com histórico de bipolaridade na família, Carolina quer saber se é uma laranja solitária que caiu de um limoeiro

Carolina me escreve para contar que vem de uma extensa linhagem de pessoas com graves transtornos bipolares. Por isso, desde criança, sempre que fica muito empolgada ou feliz, indaga-se se é mania ou alegria: “Eu me policio com relação aos meus sintomas para não deixar passar batido uma ciclotimia, ou uma hipomania que seja…”

Senti um enorme carinho por essa frase “uma hipomania que seja”. Aparentemente, o medo da solidão e a necessidade de pertencimento são tão grandes nos humanos que, inconscientemente, lamentamos quando nascemos com mais sorte e, portanto, livres de alguma doença ou transtorno que nos conectaria intimamente às mazelas da nossa família e ancestralidade. Parece uma tentativa desesperada de não parecer uma doce laranja solitária que caiu de um imenso e cheio limoeiro.

Achei interessante este email chegar justo na semana em que finalmente me consultei com uma grande especialista em bipolaridade, isso depois de pensar sobre o assunto por quinze anos e esperar cerca de seis meses pela vaga em uma agenda concorridíssima.

Falei sem parar por mais de uma hora. Contei que torro meu dinheiro compulsivamente; que sou obsessiva por mais e mais trabalhos e projetos; que depois de dias excitadíssima com a louca maravilha que é estar viva, eu geralmente deprimo com dores no corpo ou um cansaço absoluto; que tenho como meta existencial ser a alegria das festas e, ao mesmo tempo, não ir nunca jamais a nenhuma festa; que tento com esforço diário (e perdas de contratos de trabalho) controlar minha irritabilidade e impulsividade sem remédios (o que é complicadíssimo: no mapa astral tenho quatro casas em áries e, por falar em casa, fui criada por senhoras barraqueiras da Zona Leste) e, por fim, que sofro de crises pesadas de ansiedade por me sentir sem lugar ideológico-estético no mundo, posto que não pertenço mais à falta de cultura com péssimo gosto para vestimentas do lugar de onde vim e, não obstante, não suporto sequer a voz da elite a qual finjo hoje pertencer.

Em suma: meus amigos do passado são bolsonaristas que usam camisa com brasão e jamais leem um livro, mas a elite metida a intelectual que “frequento” reclama demais com a babá usando aquela sonoridade nasal cheia de empáfia (o que soa como a mais deslavada luta de classes).

Eu amo todo mundo e não suporto ninguém. Passo o dia vendo defeito em tudo e, sobretudo, em mim. Ajudo todo mundo, sou generosa, paciente, amorosa. E sou um demônio. Eu amo as pessoas com as quais trabalho, passo meses chamando todo mundo de “gênio”, derramo declarações instagramáveis, chamo para 67 projetos, de repente acho todo mundo burro ou fico perseguidíssima achando que são falsos, brigo, rompo, daí me arrependo, fico mal, daí volto a achar que fiz certo.

Ao final, a médica disse que uma dosagem bem baixa de lamotrigina, quiçá um tiquinho de lítio, não me fariam mal. Quer dizer, fariam, são remédios, mas talvez melhorassem a intensidade dos meus pensamentos e sentimentos, e ela não se recusaria a me dar uma receita. Mas que meu diagnóstico era: uma ansiosa irritada que pensa demais. “Você não é bipolar, você não precisa de tratamento para bipolaridade.”

Sai da consulta me sentindo feliz, triste, vazia, preenchidíssima, normal e estranha. Geralmente é como me sinto quando estou bem. O fato é que eu sempre tive a certeza de que não sou bipolar e a plena convicção de que sou. E esse é só mais um exemplo de que eu talvez seja. Ou uma boa maneira de concluir que sou apenas igual a todo mundo.

Carolina, não sou psicanalista nem psiquiatra, mas você me conta na sua carta que depois de dias felizes, você não sente quedas de humor e nem sintomas depressivos. Nunca sentiu. E você me relata que são dias alegres, não que resolveu correr pelada pela Avenida Paulista, tamanha excitação em se perceber humana. Uma vez uma médica me disse que o louco não sabe que está louco. E que eu, por mais que “quisesse” estar maluca, ficaria para sempre frustrada —porque ninguém fica louco só porque deseja ficar.

“Vai ter que viver isso nos textos”, ela me disse. Ela estava errada e certa. Eu tenho pavor de pirar e fico sempre às voltas com um certo arrebatamento pela loucura.

Eu acho que fico perseguindo um nome, um diagnóstico, algo que explique essa tanta coisa aqui dentro e que, por estar catalogado e estudado, traga junto uma fórmula mágica medicamentosa que me transforme no que eu acredito que seja uma pessoa de verdade, penso isso quando observo qualquer mulher aparentemente normal andando pelas ruas: olha lá, uma pessoa de verdade!

Carolina, acho que estamos bem, acontece que não deixa de doer bastante apenas porque não dói aquele além da conta preocupante.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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