Como as mulheres ainda não conquistaram o mundo?

Mulheres precisam estar atentas e organizadas para garantir que seus direitos sejam mantidos

“Nunca se esqueça de que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”. Tenho essa frase de Simone de Beauvoir fixada no perfil de uma de minhas redes sociais. Não tem um dia que não seja importante lembrá-la.

Em menos de 24 horas, há exemplos de sobra do porquê as mulheres precisam estar atentas e organizadas. No Twitter, uma ode à misoginia ganhou repercussão com o endosso do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL). O filho do presidente compartilhou um vídeo que relaciona o desabamento nas obras do metrô de São Paulo às mulheres que trabalham na empresa responsável. Bom lembrar que o parlamentar que apela à “meritocracia” para vomitar todo seu machismo, é aquele que sonhava com a Embaixada do Brasil nos EUA. No seu currículo, além de filho do papai presidente, o inglês medíocre e a experiência de fritar hambúrgueres, na época do intercâmbio.

Num outro vídeo que circula, dois integrantes do MBL se referem a feministas como mulheres que deixam o “sovaco peludo”. Reforçam um estereótipo bobo, que além de desinformar, reduz toda a luta feminista por direitos, por equidade de gênero, pelo combate à violência, a algo que não faz a menor diferença no debate e que apenas aumenta o preconceito contra todas as mulheres que levantam as bandeiras do movimento.

Ainda na sexta (4), a vereadora Camila Rosa (PSD), de Aparecida de Goiânia (GO), teve o microfone cortado a pedido do presidente da Casa, André Fortaleza (MDB) por defender, veja só, representatividade feminina na política. Cenas como essa se espalham pelo Brasil rotineiramente: mulheres, representantes eleitas, são caladas, assediadas, agredidas.

E quando eu pensava que já tinha tido o suficiente, recebo o trecho de uma live em que Heloísa Bolsonaro, casada com o filho do presidente, descreve o começo do relacionamento dos dois. Segundo conta, quando o casal se conheceu, ela buscou informações sobre ele e a família na internet e se deparou com um vídeo em que Eduardo xingava a deputada Maria do Rosário (PT). Heloísa diz que trabalhava na empresa Ipiranga e que a reação de sua chefe ao conteúdo foi a seguinte: “Helo, eu amei este homem, investe nele”.

O material foi postado no Instagram no mesmo dia em que a atitude do deputado já havia causado revolta. Heloisa faz questão de tornar público que a agressão verbal de um homem a uma adversária política contou pontos para ele. Em outras situações já deixou claro o desprezo que tem pelo feminismo. Não deixa de ser irônico que debocha de um movimento que luta para que a vida de todas as mulheres seja melhor, inclusive a da filha que os dois botaram no mundo. Coitada dessa menina.

Situações como as relatadas não são novidades, mas o machismo orgulhoso tem se evidenciado em contraponto à resistência que avança na sociedade em aceitar as desigualdades, a violência, o menosprezo aos quais as mulheres ainda são submetidas. Cresce o engajamento feminino em todas as pautas que possam promover pequenas revoluções para acabar com injustiças e diminuir o abismo que separa os gêneros.

Quando vejo a força das mulheres, sempre me pergunto como ainda não conquistamos o mundo. Somos mais da metade da população, 45% da força no mercado de trabalho, quatro em cada dez famílias são chefiadas por mulheres. Estamos em maioria nas universidades brasileiras. E mesmo assim, nossa representatividade na política ainda é muito pequena, o que dificulta a garantia de que a legislação seja justa para que a sociedade tenha mais equidade.

Por que ainda não conquistamos o mundo? Porque todos os dias há pequenas e grandes armadilhas para testar nossa capacidade de resistir, de nos organizar, de responder aos ataques. Mas isso também vem mudando. Há uma semana participei de uma reunião organizada pela ex-senadora Marta Suplicy, atual secretária de Relações Internacionais da Prefeitura de São Paulo. Quando Marta me ligou, disse que se preocupava que as questões femininas não apareciam nas declarações e entrevistas dos pré-candidatos à presidência. A questão dela é algo que venho chamando atenção desde a última eleição.

O movimento suprapartidário #elenão que tomou a ruas em protesto a Jair Bolsonaro, sabidamente um político misógino e racista, foi apenas um ensaio do que os políticos vão enfrentar em 2022. As pesquisas já mostram que a maior rejeição a reeleição do presidente vem das mulheres, um cenário parecido com o de 2018. Às que tomaram as ruas se juntarão outras e mais outras, que voltarão a se mobilizar contra candidatos que não estejam alinhados com as políticas públicas direcionadas ao eleitorado feminino. Demandas como igualdade de gênero, direitos reprodutivos, combate à violência doméstica serão cada vez mais tópicos prioritários na decisão do voto.

O resultado da reunião promovida por Marta, que teve a participação de cerca de 30 mulheres, foi uma carta aberta aos presidenciáveis, que reúne 19 pontos que precisam ser debatidos e abraçados em nome de uma sociedade mais democrática, que dê às mulheres o seu devido lugar de protagonista em nossa história. Disse à Marta e repito agora que espero que a iniciativa inspire o surgimento de outros grupos, o fortalecimento dos que já estão espalhados pelo país e que todos sejam muito atuantes ao longo dessa e das próximas eleições.

Passei uma semana impactada com a força das participantes da reunião, a maioria engajada com assuntos femininos, todas com o compromisso de melhorar a vida das mulheres brasileiras. Olhava ao redor, encantada com cada uma delas e me perguntava como ainda não conquistamos o mundo.

Dias depois, um deputado federal sugere que engenheiras mulheres são incompetentes. Eis uma das respostas. O caminho ainda é muito longo, mas estamos todas em movimento.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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