Considerações a respeito da surdez

O tal homework, ou home office, agrava mais ainda as coisas. As casas das pessoas não são estúdios de gravação, com acústica tratada. As casas são casas, com paredes de concreto, que rebatem o som, produzem eco etc. Os aparelhos de quem trabalha em casa também não se comparam aos sofisticados aparelhos de estúdio. O que você recebe é um som desfigurado pelo local e pelo aparelho do entrevistado

Queria começar falando de máscaras. Atribuo às máscaras a maioria das ocasiões em que me vejo diante de alguém que me diz alguma coisa absolutamente ininteligível, fazendo com que me pergunte às vezes em que país estranho fui subitamente atirado. Não tolero passar por surdo, embora essa fosse uma possibilidade que contemplei imediatamente quando o fenômeno começou a se repetir.

Fiquei mais preocupado ainda quando comecei a perceber que não estava entendendo bem o que falavam também na TV. Ao invés de consultar um médico, consultei um amigo técnico de som consagrado, que entende como ninguém da coisa e ganha a vida gravando sons há muitos anos. Ele me tranquilizou. “Não é você que está ficando surdo. O problema é lá deles, da TV”.

Me explicou o óbvio. Como as TVs têm de ficar no ar 24 horas e algumas delas são só de notícias, gravam  de qualquer lugar e com qualquer pessoa. Não se preocupam se atrás de quem está sendo entrevistado passa um trem ou se quem está falando é fanho ou tem um sotaque que remete a regiões insondáveis do mundo ou do Brasil. Mais frequentemente, do Brasil mesmo.

Falamos aqui todos a mesma língua, mas de maneira incrivelmente diversa. E algumas maneiras são bem mais diversas do que outras. Me senti melhor quando descobri que quando não entendia metade de uma entrevista, provavelmente os outros espectadores também não. Fui até mais longe, considerando que talvez essas entrevistas com pessoas comuns sejam apenas um enfeite, uma imagem que está ali para atestar um esforço, mostrando que a reportagem de fato andou por aí e trabalhou muito coletando notícias. Talvez também tenham concluído que o som não importa muito, na medida em que as pessoas em geral falam coisas absolutamente banais, aliás em respostas a perguntas igualmente banais.

Resultado: por que caprichar no som se o que é dito não tem a menor importância? A prova disso é que se dessem algum valor ao som, poderiam pedir ao entrevistado que falasse depois de o trem passar ou fizessem entrevistas em lugares menos barulhentos do que bares jovens da moda, por exemplo. Mas como som é só para dar cor local, pra que se dar a esse trabalhão?

O tal homework, ou home office, agrava mais ainda as coisas. As casas das pessoas não são estúdios de gravação, com acústica tratada. As casas são casas, com paredes de concreto, que rebatem o som, produzem eco etc. Os aparelhos de quem trabalha em casa também não se comparam aos sofisticados aparelhos de estúdio. O que você recebe é um som desfigurado pelo local e pelo aparelho do entrevistado.

A responsabilidade fica sendo exatamente do entrevistado que fornece imagem e som. A única preocupação consiste na pergunta: “Você está me ouvindo?” O outro responde: “E você, está me ouvindo?” Se os dois respondem afirmativamente, o problema está resolvido. Só que ouvir não é ouvir bem, sequer de maneira aceitável. É apenas ouvir. Isso tudo é atribuído à pandemia. A terrível pandemia, que faz as pessoas não saírem de casa e pelo jeito não vai embora tão cedo. Já seria mais do que tempo, porém, de criar algumas regras de trabalho para melhorar as condições de som, pelo menos do som.

Mas volto às máscaras do início e seu papel neste meu verdadeiro trauma que é tentar compreender o que meu semelhante fala. A questão é que as máscaras estão aumentando cada vez mais de espessura e há até quem esteja usando duas. Acho ótimo que sejam cada vez mais protetoras, mas aconselho então que se crie uma nova forma de comunicação entre as pessoas. Frases muito curtas, talvez ditas bem alto e sempre duas vezes. Evitar perguntar muito, como nos caixas dos supermercados, onde sou colocado diante de várias hipóteses e interrogações e frequentemente não entendo uma palavra do que me estão dizendo.

Tento recapturar na memória outros interrogatórios feitos nos caixas em tempos passados, antes da pandemia. Respondo chutando as respostas com frases que usava anos atrás, quando ouvia melhor as perguntas. Felizmente, a imaginação não é o forte dos supermercados e assim minhas respostas ao acaso parecem se encaixar perfeitamente no que me diz a funcionária. É um milagre, porque provavelmente eu também, por causa da minha máscara, não devo ser bem entendido por ela. E nesse diálogo de surdos concluímos nosso encontro mutuamente satisfeitos.

Uma nova sociedade está diante de nós pronta para tomar seu lugar no nosso cotidiano. Vamos falar sem saber bem o que estamos falando, muito menos o que estamos ouvindo. Todos de máscaras, vamos desenvolver uma possível linguagem corporal especial, acessível e prática, para, na medida do possível, substituir as palavras. Começo essa nova fase na saída do supermercado fazendo com a mão um gentil gesto de adeus para a funcionária do caixa. Ela retribui, talvez com um sorriso invisível por trás da máscara.

Ugo Giorgetti

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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