Coragem, 2021. Coragem

O que ele fez, na verdade? Agarrado ao poder que lhe caiu no colo, tratou de arrebanhar a massa dos obscuros insatisfeitos, sem alma e piedade – aquela espécie de brasileiro que o destino levou ou para a ingenuidade cega e absoluta ou para a esperteza vil, do tipo que gosta de passar a perna no próximo e furar a fila porque se a “farinha é pouca, meu pirão primeiro”

2021 ainda não mostrou a cara. Mal chegou. Mas espero que ele pelo menos nos traga coragem para combater não só a ignorância, mas também o autoritarismo, a prepotência e o obscurantismo que nos tomaram de assalto e nos colocaram no corredor da morte, sentenciados que fomos ao admitir, em nome da democracia, todos os desmandos de um idiota desqualificado – sim, existem os idiotas qualificados, mas definitivamente não é o caso dele, simplesmente um tonto turrão, cão raivoso, coisa ruim e todos aqueles adjetivos usados para definir o mais abjeto dos seres, aquele que é desumano.

Boa parte da classe política pode ser merecedora de um sujeito dessa natureza. A população brasileira não. Ela certamente vai viver 2021 entre o medo e a esperança, encarando, silenciosamente – até quando? –, a fila por um leito de UTI ou por uma nova cova nos cemitérios, porque o presidente nefasto não cuidou da saúde pública, negou-se a ver o avanço devastador da pandemia da tal “gripezinha”, protelou a compra de vacinas, transformou o combate ao coronavírus numa questão política, sequer providenciou seringas, sente um prazer mórbido ao aglomerar pessoas, desafiar a doença, e desdenha das providências. Até hoje não sabemos que vacina será usada e quando e como ela será aplicada.

O que ele fez, na verdade? Agarrado ao poder que lhe caiu no colo, tratou de arrebanhar a massa dos obscuros insatisfeitos, sem alma e piedade – aquela espécie de brasileiro que o destino levou ou para a ingenuidade cega e absoluta ou para a esperteza vil, do tipo que gosta de passar a perna no próximo e furar a fila porque se a “farinha é pouca, meu pirão primeiro”. Dane-se o outro. Ratos que, alimentados pela postura do governo, proliferaram nos porões da sociedade e lotaram praias e festas na despedida de 2020; transmissores da peste que, apesar das evidências e dos números crescentes de casos e mortes, não se enxergam como assassinos potenciais que são, tais quais o amado mito.

Coragem, 2021. Coragem para enfrentar todo esse negacionismo criminoso. Mire-se no exemplo da microbiologista Natalia Pasternak. Dia desses, no Jornal da Cultura, ela reagiu assim, logo depois da exibição de uma reportagem benevolente com aqueles que se recusam a usar máscara: “Eu estou um pouco passada com o que escutei agora, porque eu escutei humor, leveza e evitar o estresse. Então eu não posso falar pro outro fazer a coisa certa, porque eu vou ficar estressado, porque ele pode se ofender e porque eu tenho que tratar isso com leveza?…TEM GENTE MORRENDO! NÃO TEM HUMOR, NÃO TEM LEVEZA. EU NÃO TENHO QUE PEDIR PERMISSÃO DO OUTRO PARA DIZER PRA ELE QUE ELE TEM QUE USAR MÁSCARA, PARA ELE FAZER A COISA CERTA. PARA TOMAR VERGONHA NESSA CARA, QUE ELE VAI MATAR ALGUÉM. Desculpe me exaltar, mas acho que realmente poucas vezes eu vi uma reportagem tão inoportuna”.  

A voz da pesquisadora precisa ecoar numa sociedade que parece anestesiada por essa benevolência condenável. Ministros da alta corte, políticos do Congresso, juristas, representantes da sociedade civil, estudantes, trabalhadores, precisamos sair desse imobilismo conivente para dar fim à crueldade que há 10 meses está nos destruindo. Não se trata se você é de direita ou de esquerda – se Bolsonaro fosse um político decente de direita, talvez tivesse até alguma dignidade. Mas não. Ele é um nada, um vazio de sentimentos, de inteligência, de empatia, de compaixão. Um militar fracassado, um político de ocasião, um adorador da violência, discípulo da tortura, presidente de republiqueta.

Por que ele nos coloca diante da morte? Por que diz com arrogância que é contra a vacina? Por que afirma que os laboratórios é que devem correr atrás do governo? Por que não temos um plano de vacinação e dezenas de países já imunizam seus cidadãos? Por que dá o mau exemplo manipulando os incautos no afã de desacreditar a ciência e apostar na ignorância? Por que usa o discurso da honestidade quando acoberta toda a família envolvida em desvios de dinheiro público e atentados contra a democracia? 

Bem fez o Organized Crime and Corruptions Reporting Project (OCCRP), um consórcio internacional que reúne jornalistas investigativos e centros de mídia independente. O presidente brasileiro foi eleito a “Personalidade do Ano” por seu papel na promoção do crime organizado e da corrupção. Segundo a OCCRP, “ele se cercou de figuras corruptas, usou propaganda para promover sua agenda populista, minou o sistema de justiça e travou uma guerra destrutiva contra a região da Amazônia que enriqueceu alguns dos piores proprietários de terras do país”. 

Bolsonaro precisa saber que isto aqui não é uma republiqueta, que o traje da posse que exibe num display no Palácio do Planalto não é uma fantasia de carnaval, que não está acima da lei, que esse povo lutou contra uma ditadura, que muita gente foi torturada e morreu para que a democracia prevalecesse e eleições diretas acontecessem – como a que o elegeu – e que ela, a democracia, está aí para corrigir erros quando ludibriada por oportunistas de aluguel. Lugar de militar é no quartel; de torturador, na cadeia; e de presidente irresponsável, na rua – e esta é a mais complacente das hipóteses. Basta coragem, 2021. Coragem.

Para completar:

– O que Bolsonaro quis provar, mergulhando na Praia Grande, de encontro aos banhistas que desrespeitavam as orientações das autoridades de saúde? Talvez tenha se inspirado em Mussolini, que fazia a mesma coisa em nome da estética fascista.

– E o Neymar, hein? Nem falo da fantasia de mestre-sala prateado do carnaval que usou na virada do ano. Mas da pisada na bola ao apoiar, indiretamente, o filho mais velho do clã. Antes de regressar a Paris e depois de declarar ao MP que não deu festa alguma de réveillon, Neymar deixou os pés na calçada da fama do Maracanã ao lado do 01.

– 01, todo mundo sabe, está mergulhado no escândalo das rachadinhas e conta com a ajuda do papai. A coluna do jornalista Guilherme Amado, da revista Época, revelou que seus advogados tiveram três reuniões com a turma da Receita Federal para ajudar na defesa do senador, uma delas com a presença dele.

– E o que dizer do presente do presidente a 500 mil pessoas que vivem em estado de penúria extrema? Ao apagar das luzes de 2020, Bolsonaro baixou uma MP, restringindo a concessão do Benefício de Prestação Continuada a idosos e pessoas com deficiência com renda até um quarto do salário mínimo.

Luiz Antonio do Nascimento – janeiro 4, 2021

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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