Da utopia gentil ao fascismo

Os anos 60 do século passado foram marcados por movimentos sociais e políticos em vários países (França, Indonésia, Tchecoslováquia, Polônia, Senegal, Coreia do Sul, México e Estados Unidos), ensejando o protagonismo de novos ativistas liberais em busca da refundação das dinâmicas comuns à geração de seus pais.

Armas eram levadas para o campus e os estudantes envergavam uniformes militares, segundo Jonah Goldberg em Fascismo de esquerda (Record, RJ, 2009). O exemplo foi tirado da Universidade de Cornell (EUA), ao tornar-se o epicentro das ações radicais em 1969, com paramilitares dos Panteras Negras assumindo o controle da mesma depois de uma campanha de intimidação e violência sem precedentes.

Goldberg diz que os anos 60 foram um movimento utópico gentil que se opunha à guerra colonialista do Vietnã e, “buscava, dentro das fronteiras americanas, maior igualdade e harmonia social”. O grosso desse contingente era formado por idealistas deslumbrados com a chegada da Era de Aquário, embora o movimento fosse atrelado a um viés estritamente político: “Com efeito, o movimento da década de 1960 pode ser considerado o terceiro grande momento fascista do século XX”, escreveu.

A consagração da unidade – prossegue Goldberg – é um princípio essencial do fascismo e de todas as ideologias de esquerda. Mussolini adotou o feixe de varas, ou fasces, no idioma italiano, como símbolo socialista para mostrar que seu movimento valorizava a unidade acima do debate e da discussão, coisas que considerava fetiches democráticos liberais.

Assim, o brado ritmado e rimado ouvido em marchas de protesto mundo afora (“O povo unido jamais será vencido”) é um perfeito refrão fascista.

Para o jornalista “o desejo de destruir é uma excrescência natural do culto da ação. Afinal, se alguém está totalmente comprometido com a mudança revolucionária, qualquer limite com o qual se defronte – os tribunais, a polícia, a lei – deve ser convertido, cooptado ou destruído”. Esse é o argumento histórico usado por Goldberg para patentear que “todos os fascistas são integrantes do culto da ação. O apelo do fascismo era que ele faria as coisas acontecerem. Faça os trens andar no horário, ponha as pessoas para trabalhar, ponha a nação em movimento: esses são sentimentos intrínsecos à estrutura de todo movimento fascista”.

A palavra “ativista” entraria na língua inglesa na virada do século XIX puxada pela ascensão do progressismo pragmático, a ponto de intelectuais fascistas dos primeiros tempos se apresentarem como “filósofos ativistas”. O próprio Mussolini resumiria a nova postura ideológica com o repto “Tudo o que existe deve ser destruído”.

No início dos anos 60, os jovens ativistas norte-americanos encontraram um ouvido receptivo no liberalismo predominante, que cada vez mais pregava “serviço ao país”, “sacrifício” e “ação”, relatou Goldberg, ao enfatizar que John F. Kennedy – o mais jovem presidente eleito que substituiu o mais velho presidente eleito – simultaneamente alimentou essa atmosfera e apelou a ela em todas as oportunidades. “Deixem que se espalhe a notícia”, declarou ele em seu discurso de posse, com um tom quase autoritário, “que a tocha foi passada para uma nova geração de americanos, nascidos neste século, temperados pela guerra, disciplinados por uma dura e amarga paz”.

O dito mais famoso de Kennedy – “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer por seu país” – achou eco no imaginário duma geração sem esperanças que buscava a redenção coletiva da paz, tal como seus pais a haviam encontrado na guerra, depõe Goldberg.

O autor diz ainda que os anos 60 serviram, com suas súbitas mudanças (em alguns casos para melhor) como um ponto de inflexão da história recente dos Estados Unidos: “Quando Kennedy disse que a tocha havia sido passada a uma nova geração, estava se referindo, em não pequena medida, a uma nova geração de progressistas. Aqueles homens (e aquelas poucas mulheres) estavam dedicados a continuar os projetos de Wilson e Roosevelt. Quando a tocha é passada, os corredores mudam, mas a corrida permanece a mesma”.

Com o assassinato de Kennedy no dia 22 de novembro de 1963, em Dallas, Texas, assumiu o então vice-presidente Lyndon B. Johnson. A princípio divulgou-se que a morte do presidente havia sido uma maquinação de “direitistas loucos e anônimos”, mas poucos dias depois soube-se que um marxista desequilibrado havia sido o autor dos disparos fatais, levando os defensores de Kennedy à depressão. Goldberg repete a frase que Jackie teria dito a Bobby Kennedy, irmão do presidente: “Ele nem mesmo teve a satisfação de ser morto por causa dos direitos civis”.

Essa história se transformou em lenda porque os liberais estavam desesperados para dar ao assassinato de Kennedy um significado mais exaltado e politicamente útil: “Repetidamente, toda a elite liberal, liderada pelo New York Times – e até pelo papa! – denunciou o ‘ódio’ que havia tirado a vida de Kennedy. O juiz Earl Warren, da Suprema Corte, resumiu a sabedoria convencional – algo que ele sempre estava disposto a fazer – quando teorizou que o ‘clima de ódio’ em Dallas – código para designar pesada atividade direitista e republicana – havia impelido Lee Harvey Oswald a matar o presidente”.

Os anos 60 deram também lugar, como uma espécie de panaceia para os males da sociedade norte-americana, a uma teorização psicológica que rompeu suas margens até tornar-se uma solução de uso generalizado para a “questão social”, como diziam os progressistas. Segundo Goldberg, a psicologia moderna conseguiu substituir com perfeição o Evangelho Social, o militarismo e outras facetas da religião do governo: “Assim como os progressistas haviam estado determinados a extirpar os biologicamente inadequados, eles agora dirigiam as mesmas energias contra os psicologicamente inadequados. Alguns psiquiatras liberais começaram até a descrever uma nova ‘religião da psiquiatria’ que iria curar a sociedade de seus elementos ‘extremistas’, tradicionais, retrógrados, conservadores”.

Uma onda de teólogos liberais se misturou, a meio caminho, com os psiquiatras que trafegavam na mesma direção, argumentando que várias neuroses eram o produto da alienação social e que a religião tradicional deveria se reorientar a fim de curá-las.

Nesse caldo de cultura os fascistas liberais da organização Estudantes para uma Sociedade Democrática e os Panteras Negras se rebelaram para aterrorizar a classe média americana. Goldberg lembra que entre as pessoas que agiam como “radicais de terno e gravata” estavam Hillary Clinton e seus amigos, que “usaram esse terror para expandir o poder e o escopo do Estado e, acima de tudo, para mudar a atitude pública com relação ao Estado como agente do progresso social e da proteção e compaixão universais”.

O autor diz que é algo bizarro optar por Lyndon Johnson para o papel de salvador do liberalismo (quem o escolheu foi a bala do rifle de Lee Oswald), embora haja o reconhecimento de que LBJ “era o típico político inteiramente dedicado ao moderno Estado de bem-estar social, a personificação de tudo o que o New Deal representava. A despeito de sua personalidade espaçosa, ele era, na realidade, a personificação do sistema que havia ajudado a criar”, como um dos mais fanáticos assessores de FDR.

“Quando Johnson recolheu a bandeira caída do liberalismo”, escreveu Goldberg, “estava encarregado de construir a igreja do liberalismo sobre a rocha da memória de Kennedy, só que precisava fazer isso usando as expressões psicológicas da moda, ‘significado’ e ‘cura’. Ele se lançou – ou se deixou lançar – como o São Paulo secular do Messias liberal tombado. A Grande Sociedade de LBJ seria a igreja construída sobre a ‘mensagem’ imaginária de Camelot”.

Na descrição do próprio LBJ, em discurso feito a 22 de maio de 1964, “a Grande Sociedade baseia-se na abundância e na liberdade para todos. Ela demanda o fim da pobreza e da injustiça social, e estamos totalmente comprometidos com isso agora. Mas é apenas o começo. A Grande Sociedade é um lugar onde toda criança pode encontrar o conhecimento que enriquecerá sua mente e ampliará seus talentos. É um lugar onde o lazer é uma oportunidade bem-vinda de construir e refletir, e não causa amedrontadora de tédio e inquietação. É um lugar onde a cidade do homem serve não apenas às necessidades do corpo e às demandas do comércio, mas ao desejo de beleza e à fome da comunidade”.

Enquanto isso renascia a ambição liberal alimentada por anticorpos antiestatizantes gerados pela massa crítica atraída pela National Review, criada em 1955 para servir de “lar intelectual a uma heterodoxa coleção de pensadores que formariam o conservadorismo moderno. É revelador que, enquanto William F. Buckley sempre havia sido um liberal clássico e um tradicionalista católico, quase todos os intelectuais cofundadores da National Review eram ex-socialistas e ex-comunistas que haviam se desencantado com o deus caído”.

Quase ao meio da década (1964), o senador Barry Goldwater era o candidato escolhido pela National Review, literalmente lançado pela publicação, primeiro candidato presidencial republicano desde Coolidge que quebrava as suposições centrais do progressismo. Foi imediatamente demonizado como candidato do “ódio” e do nascente fascismo. LBJ o acusou de pregar o ódio e consistentemente tentou ligá-lo a grupos terroristas propagadores do ódio como a Ku Klux Klan (cujas bases, é claro, eram tradicionalmente formadas por democratas), sugeriu Jonah Goldberg.

Matéria paga no The New York Times dizia que 1.189 psiquiatras haviam diagnosticado Goldwater como psicologicamente inadequado para ser presidente. O ataque foi então espalhado por meio de uma cobertura excessiva feita pela ‘imprensa livre’, e um radialista famoso na época declarava abertamente, sem nenhuma base factual, que as suas férias na Alemanha eram “um golpe do senador para estabelecer vínculos com elementos neonazistas”.

Kennedy e Johnson representavam a crença em que uma sociedade afluente esclarecida podia resolver todos os problemas, corrigir todos os erros, frisa o autor ao arrazoar que “não nos sentimos culpados quando forças fora do nosso controle fazem coisas maléficas. Mas quando você tem o poder de controlar tudo, você sente culpa a respeito de tudo. Lyndon Johnson não apenas deu mais impulso à política de expectativa de Kennedy ao declarar ‘nós podemos fazer tudo; somos o país mais rico do mundo’, mas transformou quaisquer limitações, em qualquer lugar, em evidência de um compromisso precário, de racismo, insensibilidade ou simplesmente ‘ódio’. Sentir-se culpado era um sinal da graça, pois provava que seu coração estava no lugar certo”.

Nesse clima, era inevitável o surto de gastos liberais. Goldberg lembra os antigos membros da nobreza que compravam indulgências da Igreja, os liberais do establishment que procuravam expiar suas culpas fornecendo aos oprimidos o máximo possível de brindes, entre os quais o pagamento em dinheiro aos pobres e a recuperação da infraestrutura das comunidades.

O fascismo foi uma resposta humana a uma série de revoluções tecnológicas, teológicas e sociais que se desdobravam rapidamente. Aquelas revoluções ainda estão em curso e, como a esquerda definiu fascismo como oposição conservadora à mudança, é impossível que algum dia deixemos de ser fascistas, de acordo com essa definição. A opinião, até certo ponto audaciosa, é do jornalista que temos acompanhado em quatro jornadas (essa será a última como prometi, antes que a paciência do editor do blog e dos raros leitores se esgote).

Mas de uma coisa o leitor esteja certo. Conte com minha inteira concordância: a de discordar frontalmente do pensamento do ex-editor da The New Yorker, que se esfalfou para dar credibilidade mesmo às ideias mais polêmicas mediante a produção de um calhamaço de 545 páginas que devorei em três semanas, com um adendo: foi o melhor livro que li em 2016.

Talvez não tenhamos que esperar tanto tempo até que um jornalista investigativo com o faro de historiador de Jonah Goldberg conte com a mesma abrangência intelectual o que aconteceu nos Estados Unidos com o legado de Barack Obama (se que é houve algum) e o advento da era Hillary Clinton (uma senhora acadêmica) ou Donald Trump (um ilustre desconhecido), que está apenas começando. Quem viver verá.

Ivan Schmidt

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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