De pessimismos e marrecas

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© Julio Knoll

O Millôr disse que o homem, como espécie, foi um fiasco retumbante. Mas que alguns indivíduos deram certo. Concordo inteiramente.

Há dias em que, sem modéstia nenhuma, me sinto na lista dos que deram certo. Em outros me sinto apenas mais um dígito perdido na massa disforme da espécie. A verdade, como sempre, é mais complicada do que sonegação fiscal de assalariado. Quero dizer, talvez o indivíduo dê certo por instantes. No fim, somando esses instantes, pode ser que ele tenha dado certo por uma semana durante a vida toda, ou um dia, ou uma tarde, ou algumas horas. Sem falarmos que um acerto de meio minuto pode ser glorioso, como quando o Newton se deu conta de que a maçã que cai e a lua que não cai obedecem à mesma lei, embora a gente saiba que por trás desse meio minuto havia uma vida toda de treino. Isso também vale pros erros. Há erros tão monstruosos que seria melhor a gente nem falar. Pense no instante em que o cara pensou no uso do forno a gás pra fazer uma limpeza étnica, por exemplo.

Pode parecer esquisito, mas meu ceticismo não me impede de viver alegremente – devo ter algum distúrbio glandular. Mas, claro, sempre há uma hora em que me sinto cabisbaixo nos dois sentidos, como dizia o Campos de Carvalho, com o que vivo e testemunho. É nessa hora que me lembro do apito para chamar marreca-piadeira.

Há quem desfralde a bandeira dos gênios literários: Sófocles, Shakespeare, Cervantes, Rabelais. Eles justificariam a espécie. Pode ser. Mas, confesso: bem no fundo, não me impressionam. É muito besta de minha parte, sei, mas não me impressionam. É como se esse tipo de genialidade fosse esperado.

Me impressiona mesmo é o apito pra chamar marreca-piadeira. Tento imaginar o primeiro homem que pensou em fazer esse apito, nas horas que gastou cortando um pedaço de madeira, no instante em que deu o primeiro sopro e se ouviu o canto falso de uma marreca-piadeira. Isso sim é fantástico. Não me encha com Hamlet. O Édipo que vá catar coquinho na ladeira. Queria era estar na mente do homem que inventou o apito pra chamar marreca-piadeira no instante fatal da realização. Uma espécie que produziu um indivíduo capaz de bolar um apito pra chamar marreca-piadeira merecia um destino melhor. É ou não é?

Poderíamos ter sido gloriosos.

Ernani Ssó é escritor, vive em Porto Alegre. Colabora com os sites Coletiva Net e Sul21, e virou colaborador fixo do Seguinte:

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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