Carioca de nascimento, Vera Maria Lacombe Miraglia pertencia a uma tradicional família de educadores. Chegou em Curitiba em 1962, onde atuou inicialmente num pequeno jardim de infância, denominado Jean Piaget, em homenagem a seu amigo pessoal. Depois, nos anos 70, foi a idealizadora e fundadora da escola Anjo da Guarda, que se tornaria uma das maiores referências do ensino paranaense – “um oásis do bom ensino”, como definiu alguém –, com aulas do maternal ao 3º ano do Ensino Médio.
Vera seguia uma linha educacional criativa, construtiva e transformadora, influenciada por Piaget. Além do que, por ser gentil e carinhosa com seus alunos, sem deixar de ser rigorosa quando necessário, tornou-se querida e respeitada por todos. Meu filho Carlos Eduardo, que frequentou o Anjo da Guarda desde o maternal, era um de seus admiradores.
Pessoalmente, eu também respeitava e queria bem Vera Miraglia. E jamais me esqueci de duas passagens ocorridas em uma reunião de pais e mestres organizada por Vera, da qual participei. A primeira envolveu o laureado publicitário Sergio Reis, que disse querer fazer apenas uma pergunta: “Aqui, meu filho será programado ou aprenderá a pensar?” “Com certeza, aprenderá a pensar” foi a resposta.
A segunda passagem envolveu a mãe de um aluno, que reclamou do piso irregular, com desníveis, e de árvores no pátio da escola. Resposta de Vera: “E você acha que o piso da vida que as crianças vão enfrentar será liso como uma lousa? A existência de árvores também faz parte do aprendizado”.
Vera achava que o educador tem de ser “um contador de histórias”. O pensamento era compartilhado pelo escritor moçambicano Mia Couto, para quem o ensino é baseado na imaginação, ou seja, há que se ensinar a norma culta, mas com espaço para a imaginação nas escolas.
Os mais de 50 anos de interação com os alunos e professores dentro e fora da sala de aula, levaram Vera Miraglia a defender sete passos necessários na organização do trabalho com as crianças e também com os alunos maiores. Enumerou-os em entrevista concedida, em 2015, à Revista Latinoamericana de Educação Infantil – Reladei:
– Exploração do material, é um. Depois, vem a situação problema: o que a gente vai fazer com esse material. Como vamos resolver essa situação problema? O problema é o uso daquilo que eles receberam. Às vezes, eles dão palpite e eu também, mas eles têm que dar solução do que podem fazer. O terceiro são as relações, relações com a vida. Por exemplo: Para que serve o quadrado? Usa na Geografia? Usa na História? A história do quadrado. Quando eu digo para vocês quem não é quadrado se vira, porque será? O que isto quer dizer? E o quarto é o vocabulário: o vocabulário não é para dar definições exatas. Lógico que não! Por exemplo, o quadrado, o que será um quadrado, tem lado? Quantos lados? Pode ser grande ou pequeno? Verde ou vermelho? O quinto é tomar consciência de que tem um conhecimento: por exemplo, no quadro de matemática tem escrito quadrado. Ele não vai definir, mas, ele vai saber que ele já sabe o que é um quadrado. Isso é a posse desse vocabulário. Isso que mostra para ele uma coisa fantástica, ele sabe uma coisa! Essa ideia do saber é que a gente explora pouco. Ele tem que acima de tudo se convencer que ele está na escola para saber coisas. Isso que é a filosofia do negócio. Ele tem que tomar conhecimento que ele sabe coisas. Agora ele é importante porque ele tem um conhecimento. Uma coisa fantástica, ele tem o poder de saber e que o saber ninguém tira e o que sabe pode até dividir com alguém. (…) Outro passo, o sexto, é pedir que o que o aluno diga o que mais gostou, é explorar o gosto do aluno. Cada um faz no papel aquilo que ele mais gostou. (…) Essa ideia de você gostar das coisas é uma coisa interessante, ele sabe uma coisa e ele gosta dessa coisa. (…) O sétimo passo é a fixação. A fixação, sem chateação.
E aí remete-se outra vez a Mia Couto: os romances do escritor apresentam, normalmente, mestres e educadores que servem de referência aos personagens. A maioria ensina saberes que ultrapassam aqueles aprendidos na escola; são sabedorias que servem para toda a vida. Tal qual fazia a educadora Vera Miraglia.
Em 2018, a Escola Anjo da Guarda passou a funcionar em associação com o Colégio Marista, depois de mais de meio século de atividades.
No final de setembro de 2022, a “tia” Vera completou 90 anos. Em uma festa promovida pelo “novo” Colégio Marista Anjo da Guarda, a instituição destacou a marca criativa que a educadora deixou em cada “anjo” que conviveu com ela.
“Tia” Vera Maria Lacombe Miraglia, além de milhares de “sobrinhos”, está deixando muita saudade.