Um adeus para “tia” Vera

Curitiba, o Paraná e o Brasil perderam, na sexta-feira 29/10, uma das maiores e mais queridas educadoras deste país: Vera Miraglia. A “tia” Vera, como gostava de ser chamada, faleceu nesta Capital, aos 91 anos de idade, depois de quase 60 anos de destacada atuação no ramo educacional.

Carioca de nascimento, Vera Maria Lacombe Miraglia pertencia a uma tradicional família de educadores. Chegou em Curitiba em 1962, onde atuou inicialmente num pequeno jardim de infância, denominado Jean Piaget, em homenagem a seu amigo pessoal. Depois, nos anos 70, foi a idealizadora e fundadora da escola Anjo da Guarda, que se tornaria uma das maiores referências do ensino paranaense – “um oásis do bom ensino”, como definiu alguém –, com aulas do maternal ao 3º ano do Ensino Médio.

Vera seguia uma linha educacional criativa, construtiva e transformadora, influenciada por Piaget. Além do que, por ser gentil e carinhosa com seus alunos, sem deixar de ser rigorosa quando necessário, tornou-se querida e respeitada por todos. Meu filho Carlos Eduardo, que frequentou o Anjo da Guarda desde o maternal, era um de seus admiradores.

Pessoalmente, eu também respeitava e queria bem Vera Miraglia. E jamais me esqueci de duas passagens ocorridas em uma reunião de pais e mestres organizada por Vera, da qual participei. A primeira envolveu o laureado publicitário Sergio Reis, que disse querer fazer apenas uma pergunta: “Aqui, meu filho será programado ou aprenderá a pensar?” “Com certeza, aprenderá a pensar” foi a resposta.

A segunda passagem envolveu a mãe de um aluno, que reclamou do piso irregular, com desníveis, e de árvores no pátio da escola. Resposta de Vera: “E você acha que o piso da vida que as crianças vão enfrentar será liso como uma lousa? A existência de árvores também faz parte do aprendizado”.

Vera achava que o educador tem de ser “um contador de histórias”. O pensamento era compartilhado pelo escritor moçambicano Mia Couto, para quem o ensino é baseado na imaginação, ou seja, há que se ensinar a norma culta, mas com espaço para a imaginação nas escolas.

Os mais de 50 anos de interação com os alunos e professores dentro e fora da sala de aula, levaram Vera Miraglia a defender sete passos necessários na organização do trabalho com as crianças e também com os alunos maiores. Enumerou-os em entrevista concedida, em 2015, à Revista Latinoamericana de Educação Infantil – Reladei:

– Exploração do material, é um. Depois, vem a situação problema: o que a gente vai fazer com esse material. Como vamos resolver essa situação problema? O problema é o uso daquilo que eles receberam. Às vezes, eles dão palpite e eu também, mas eles têm que dar solução do que podem fazer. O terceiro são as relações, relações com a vida. Por exemplo: Para que serve o quadrado? Usa na Geografia? Usa na História? A história do quadrado. Quando eu digo para vocês quem não é quadrado se vira, porque será? O que isto quer dizer? E o quarto é o vocabulário: o vocabulário não é para dar definições exatas. Lógico que não! Por exemplo, o quadrado, o que será um quadrado, tem lado? Quantos lados? Pode ser grande ou pequeno? Verde ou vermelho? O quinto é tomar consciência de que tem um conhecimento: por exemplo, no quadro de matemática tem escrito quadrado. Ele não vai definir, mas, ele vai saber que ele já sabe o que é um quadrado. Isso é a posse desse vocabulário. Isso que mostra para ele uma coisa fantástica, ele sabe uma coisa! Essa ideia do saber é que a gente explora pouco. Ele tem que acima de tudo se convencer que ele está na escola para saber coisas. Isso que é a filosofia do negócio. Ele tem que tomar conhecimento que ele sabe coisas. Agora ele é importante porque ele tem um conhecimento. Uma coisa fantástica, ele tem o poder de saber e que o saber ninguém tira e o que sabe pode até dividir com alguém. (…) Outro passo, o sexto, é pedir que o que o aluno diga o que mais gostou, é explorar o gosto do aluno. Cada um faz no papel aquilo que ele mais gostou. (…) Essa ideia de você gostar das coisas é uma coisa interessante, ele sabe uma coisa e ele gosta dessa coisa. (…) O sétimo passo é a fixação. A fixação, sem chateação.

E aí remete-se outra vez a Mia Couto: os romances do escritor apresentam, normalmente, mestres e educadores que servem de referência aos personagens. A maioria ensina saberes que ultrapassam aqueles aprendidos na escola; são sabedorias que servem para toda a vida. Tal qual fazia a educadora Vera Miraglia.

Em 2018, a Escola Anjo da Guarda passou a funcionar em associação com o Colégio Marista, depois de mais de meio século de atividades.

No final de setembro de 2022, a “tia” Vera completou 90 anos. Em uma festa promovida pelo “novo” Colégio Marista Anjo da Guarda, a instituição destacou a marca criativa que a educadora deixou em cada “anjo” que conviveu com ela.

“Tia” Vera Maria Lacombe Miraglia, além de milhares de “sobrinhos”, está deixando muita saudade.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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