Deserto

Ando com uma sensação de déjà-vu preocupante. O colapso recente parece a reedição torta de algo que já vivi.

À bonança financeira da era Lula, seguiu-se à crise institucional, agravada pela queda do valor do petróleo. A reviravolta tem potencial tão desastroso quanto a subida vertiginosa do barril, que deu cabo do milagre econômico nos anos 1970: a inflação atingiu dois dígitos, brasileiros optam pelo aeroporto, a polícia baixa o cacete nas ruas de São Paulo e até a palavra golpe foi ressuscitada.

Voltei a experimentar um isolamento que há muito não sentia. Como se o Brasil estivesse condenado, por um imperativo geográfico que impregna a política, a educação, as artes e a economia, a viver à margem das demais sociedades.

Eu tinha nove anos quando viajei pela primeira vez para o dito primeiro mundo. O português, língua universal da zona sul carioca, descobri ali, era ignorado no restante do planeta.

Meus pais estavam na casa dos 40 e nunca haviam pisado no Hemisfério Norte. Graças ao prêmio Molière de teatro, que dava direito a duas passagens de econômica para cada um, o casal planejou o giro.

Para sanar a lacuna de uma vida inteira, cumprimos uma maratona exaustiva. Em 45 dias, visitamos Paris, Londres, Siena, Pádua, Verona, Assis, Florença, Veneza, Roma, o Vaticano, Pompeia, a Costa Amalfitana, Nápoles, Sardenha, Lisboa, Nova York, o Cabo Canaveral e a Disney.

Apesar do desespero, a viagem me deu uma ideia da enormidade do mundo e da ilha em que eu vivia.

Nossa condição era reflexo da distância eterna e do fechamento do país continental, governado por um nacionalismo de caserna, que exigia depósitos compulsórios para cruzar a fronteira e coibia o livre trânsito de mercadorias, dinheiro e ideias.

Meu desconforto no além-mar custou 20 anos para ser vencido. Os mesmos 20 que o país levou para se abrir e se democratizar.

Passaram-se décadas até que a anistia fizesse efeito e os intelectuais do exílio voltassem à ativa, até que os sindicatos produzissem um líder carismático, a China abrisse uma nova linha de comércio, a moeda se tornasse confiável e usufruíssemos de um sentimento de futuro.

Economistas arriscam uma estimativa de dois a três anos para sairmos do atual buraco. Meu pessimismo pressente a chegada de um ciclo que costuma levar de 15 a 20 para se completar. A ditadura persistiu de 1964 a 1979; a penúria, de 1979 a 1995; e a estabilidade, de 1995 a 2010.

Já atravessamos cinco natais com Dilma, faltam no mínimo dez para a próxima guinada.

Deus fez os hebreus vagarem durante quatro décadas pelo deserto, à espera de que os que nasceram no Egito passassem dessa para a melhor, livrando Canaã das antigas influências.

Salmo 95, versículo 10: “Quarenta anos estive desgostado com esta geração e disse: é um povo que erra de coração e não tem conhecimento dos meus caminhos”.

Eu morro aqui, sem Terra Prometida, ao lado de Moisés, Aarão, Lula, FHC, Dilma, Sarney, Cunha, Temer, Renan e Collor, enquanto olho para os meus filhos e pergunto:

“Quem será o Josué que atravessará o rio Jordão com eles, carregando o andor com as tábuas?”

A chance é grande de ser um discípulo de “Os Dez Mandamentos”, da TV Record.

Fernanda-torres

Fernando Torres – Folhas de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Sem categoria e marcada com a tag , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.