Há uma violência totalitária que subsiste e ameaça

Chefes militares adestrados divulgam ordens do dia virtuosas em que se passam por democratas, escondendo todo o atraso e a sujeira que deixaram. Suprimem as prisões e a tortura, os atos institucionais, os ataques à cultura. Copidescam a longa noite de arbitrariedades, os banimentos e as condenações à prisão perpétua

Tão execráveis quanto foram os atos de violência praticados pela ditadura é a tentativa insólita de reescrever a sua história para mudar o passado. História recente que ainda nos assusta, a ditadura não acabou. Sobrevive nas pequenas e grandes coisas que se manifestam no nosso cotidiano, que incluem as feridas e as cicatrizes deixadas nos corpos dos que resistiram.

Iniciada com o golpe de Estado de abril de 1964, a ditadura pode não ter existido, é o que dizem oficiais militares das Forças Armadas que se proclamam revisores da historiografia. A marcha dos tanques para depor o presidente Goulart foi relembrada neste 1º de abril com protestos de organizações da sociedade civil e de grupos de ativistas defensores da Memória, da Verdade e da Justiça, que mantêm ativas suas formas de mobilização, para preservar as imagens do terror e condenar sua repetição.

Nenhuma garantia temos, a não ser a resistência, os atos de desobediência civil e as barricadas. Como continuam fazendo esses movimentos defensores da verdade e da memória, que promovem debates, montam acampamentos em frente ao prédio do Dops, produzem documentários e espetáculos teatrais nas universidades. São grupos que se intitulam Coletivos pela Memória, Verdade, Justiça e Reparação.

A Comissão da UFRJ criou e produziu uma série audiovisual denominada Histórias Incontáveis, envolvendo diversas coletividades atingidas pela repressão. Os episódios são debatidas em público tendo como narradores testemunhas dos acontecimentos. Cada documentário transmite imagens da violência da ditadura contra essas comunidades, sejam de negros, mulheres e povos indígenas.

Nos postos do governo e fora dele, os mesmos inimigos da democracia apontam suas armas e atacam com a desfaçatez de sempre, usando os poderes e os instrumentos de manipulação e coação de que dispõem. Creem que com a violência de apagar seus crimes anteriores, eliminam da Historia a violência real do terrorismo de Estado insepulto, agora em busca de mais um mandato totalitário.

Chefes militares adestrados divulgam ordens do dia virtuosas em que se passam por democratas, escondendo todo o atraso e a sujeira que deixaram. Suprimem as prisões e a tortura, os atos institucionais, os ataques à cultura. Copidescam a longa noite de arbitrariedades, os banimentos e as condenações à prisão perpétua. Nada disso consta das notas forjadas nos antigos quartéis. Os generais querem adulterar a História pela via da intimidação.

Vestidos em seus uniformes de guerra, pensam que podem tudo em nome de Deus, das tropas, das milícias, do evangelho, de congressistas, dos indiferentes, dos financistas e dos corruptos que tomaram o Estado. Ao redor, os novos fascistas surgem em profusão. São fascistas de uma espécie nova, sem sequer consciência do significado do termo. Cafajestes e oportunistas, praticam a ideologia defendida pelo líder, que anuncia a redenção totalitária.

Não se arrependeram dos crimes anteriores porque não foram punidos. Receberam a anistia por crimes classificados como imprescritíveis. Na sinistra ordem do dia dirigida a seus parceiros, o ministro da Defesa diz que “no pós-64 a sociedade brasileira passou por um período de estabilização, crescimento e amadurecimento político, que resultou no restabelecimento da paz e o fortalecimento da democracia”. Bolsonaro e Mourão repetiram o mesmo discurso tortuoso e provocativo de negação da história.

Os jovens que foram ao Lollapalooza e proclamaram não aceitar a censura precisam saber que em outros tempos os jovens se opuseram ao regime de arbítrio. Alguns desapareceram, tiveram seus corpos tragados nos subterrâneos do Estado policial. Foram valentes diante das bestialidades. É sobretudo importante que saibam também que aqueles jovens iam a festivais, que as cartas trocadas de dentro dos cárceres entre os namorados contam uma história de amor, resistência e esperança. 

Para que as imagens dessa história verdadeira não sejam esquecidas nem destruídas, será necessário preservar os registros que estão nos museus, nas bibliotecas e nos arquivos dos jornais. Tombar os imóveis que guardam as vozes e os gritos sufocados dos prisioneiros. Abrir em especial para os jovens os sonhos e pesadelos daquele reinado de trevas contido nos 21 anos de duração da ditadura.

A eleição presidencial que se aproxima porá a democracia brasileira frente a frente ao fascismo. Talvez seja a mais importante e decisiva de nossa história. De um lado Lula, de outro Bolsonaro. Com os avanços da história, acabou o tempo em que os regimes totalitários aconteciam em países distantes, longe de nossos olhos, durante guerras e confrontos por território. Não é mais na Itália, Alemanha, Espanha, Tchecoslováquia ou Hungria. O totalitarismo está aqui.

Víamos com temor os filmes de denúncia política de Costa-Gravas, como Z e A Confissão(foto). Livros queimados, traições e perseguições, presos interrogados em calabouços, confissões obtidas sob tortura. Pesquisas feitas até agora indicam que Bolsonaro perderá a eleição. Mas ele passará a faixa presidencial a seu sucessor ou dará um golpe antes, tentando de todas as formas impedir que sejam realizadas? Esta realidade precisa ser enxergada, estamos enfrentando um tempo de barbáries pessoais e coletivas.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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