É claro que o Brasil tem jeito! É a política, estúpido!

Afirmar que Lula e Bolsonaro são faces do mesmo mal corresponde a repudiar a vontade de 70% do eleitorado, como se o povo atrapalhasse o Brasil

Falemos de futuro em vez de alimentar as ideias mortas que ainda matam. É preciso cultivar nosso jardim. Sempre me incomoda quando os tais “mercados” —às vezes, com cara; com frequência, sem ela — resolvem comparecer ao debate público para demonizar a política, como se a empresa de expectativas chamada “Brasil” fosse uma potência massacrada por interesses mesquinhos, que têm de ser exorcizados.

No que há de sincero nessa conversa, trata-se de uma ilusão entre tecnocrática e autoritária. No que há de insincero, é só o vício de sempre se vendendo como virtude, muitas vezes na pena de rufiões da opinião. Isso tem custo. Observo, à partida, que nem sei direito quem é esse “ente” que fala.

As vozes parecem vir de alguma racionalidade empírea, que nos faz o favor de baixar lá do mundo das ideias para nos libertar das correntes da escuridão. Na última vez em que esses arautos julgaram ter visto a luz para nos relatar a verdade do mundo, escolheram Jair Bolsonaro e Paulo Guedes para nos tirar da caverna. Deu no que deu.

Ah, obviamente eu não quero esculhambar as contas públicas; mandar o teto de gastos às favas —até porque a dupla milagrosa já fez isso—; defender que se gaste à vontade; que se aposte em um pouco mais de crescimento ainda que isso custe um tanto extra de inflação.

Noto à margem que temos produzido inflação alta, com baixo crescimento e juros na estratosfera. Se indagarmos ao “ente” o que há de errado na equação, a resposta vem de pronto: é a questão fiscal.

Eu gostaria sinceramente que os nossos pensadores, que tiveram acesso às luzes, oferecessem, então, o seu padrão de resposta fiscal, mas sem provocar uma convulsão social —afinal, suponho que o plano não contemple tropas nas ruas. Em outubro de 2020, por exemplo, Guedes especulou sobre a privatização das UBSs. A Covid-19 já matava a rodo.

Em abril de 2021, com o gráfico de mortos em escalada vertiginosa, resolveu refletir sobre a Saúde nos seguintes termos, com a habilidade de sempre quando trata da questão social: “Pobre? Está doente? Dá um voucher para ele. Quer ir no Einstein? Vai no Einstein. Quer ir no SUS, pode usar seu voucher onde quiser”. Já havia proposto, àquela altura, a “vaucherização” da Educação.

Eis aí. Então vamos cortar radicalmente as despesas, acabando com as vinculações orçamentárias. Ao mesmo tempo, é preciso tocar as reformas administrativa e tributária e levar adiante as privatizações. E por que não se fez? “Ah, é que a política e os políticos impediram o governo de levar adiante o seu projeto”.

É? O atual comando da Câmara decorreu de uma escolha feita por Bolsonaro, com o aplauso de seu ministro da Economia.

Ocorre que a política existe. E não é só aqui. Um governo que quer formar consensos, ou quase isso, em defesa de algumas ideias que, em princípio, podem até ser recusadas pela maioria tem de mobilizar seus apoiadores e articuladores para, então, fazer o trabalho de convencimento, que pode ou não ser bem-sucedido.

Bolsonaro ocupou seus dois primeiros anos tentando articular um golpe. Nos dois finais, atuou como refém daqueles a quem teve de comprar para não cair. E estes, reconheça-se, por contraste, desmobilizaram o seu golpismo.

Guedes está por aí a pedir uma segunda chance para o que chama de união bem-sucedida entre “liberais e conservadores”. Santo Deus!

“Não entendi aonde você quer chegar, colunista!” Eu explico. “É a política, estúpido!” Se o próximo presidente não tiver a habilidade de sentar para conversar, de buscar o ponto de equilíbrio entre forças aparentemente inconciliáveis, de inserir na equação —e já— os milhões desassistidos pela crise, não há ponto de chegada virtuoso.

A cada vez que leio raciocínios tortos, segundo os quais o Brasil precisa se livrar, a um só tempo, de Lula e Bolsonaro porque supostas faces do mesmo mal, cercados por políticos interesseiros, constato, com estupefação, mas não com surpresa: querem mesmo é exorcizar a vontade expressa de pelo menos 70% do eleitorado. Mais um pouco, e alguém sugere que o Brasil tem cura, mas só com outro povo. São os iluminados das cavernas.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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