O Dedo-Duro

— Alô, Mercer? Alles blau? Aqui também. Escuta: o pessoal, Paulinho Vítola, Jaime Lechinski, Ernani Buchmann, Roberta Storelli, Werneck, Dante Mendonça, Jaime Lerner, Nireu Teixeira, veja bem, não quero estragar a surpresa, está querendo fazer uma cerimônia, uma espécie de homenagem, digamos, lamentando os 10 anos sem Sérgio Mercer. Falando da falta que você faz, essas coisas.
— Ah, é? Huummm. Eles fazem isso pra todos.
— Você recebeu flores em vida?
— Algumas. Mas murcharam muito rapidamente. Uma duas ou três vezes. Não mais que isso. A Marica nem as colocou no vaso.
— Então. Ele vão escrever sobre você aquelas coisas maravilhosas, que você sempre foi um sujeito formidável, excepcional, uma pessoa extremamente criativa, um gourmet que não sabia fritar ovos. Que você tinha uma risada contagiante. Por onde andava espalhava alegria. Eu inclusive, queria contar algumas coisas que fizemos. Que uma noite fomos a um bar, eu você, o Miran, João Mídia, Raquel Machado e Fernando Nogueira e tomamos todas da noite. Até amanhecer o dia. Roubamos a carteira de um famoso colunista social da época e pegamos todo o dinheiro pra continuarmos a bebelança. E continuamos até não aguentar mais. Então fomos à uma pastelaria, lembra? Comer pastéis e tomar refrigerantes pra ver se passava a ressaca. O sol começava a nascer. Eu, você e Fernando Nogueira. Aí, na hora de pagar a conta, ninguém tinha dinheiro. O dono da pastelaria não queria nem saber. Queria receber de qualquer maneira. Então, Mercer, lembra-se? Deixamos você como refém do truculento dono da pastelaria e prometemos ir buscar o dinheiro para resgatá-lo. Alguém foi? O Fernando Nogueira apareceu? Eu não fui. Cheguei em casa e dormi, quer dizer, desmaiei. — Não, ninguém foi me resgatar. Fiquei até as 10 da manhã, vocês não apareceram eu assinei um documento para o dono da pastelaria. Também não apareci mais.
— Pois é. Pra você ver. Bolso de bêbado não tem dono.
— Eu sei, Soldinha.
— Tem mais, vão dizer que você foi um presidente da Fundação Cultural de foder. Fez um Festival de Humor e, num sábado levou todos os cartunistas que estavam em Curitiba pra almoçar no Guilhobel. Depois do pantagruélico almoço, colocou o lenço na perna e tocou todo o repertório do Piazzolla no famoso bandonéon imaginário. Uma figura excepcional.
— Fui aplaudido em pé! Por uns 10 minutos!
— Sim, e os cartunistas me perguntavam, quem é esse sujeito engraçado, essa figura formidável? É o presidente da Fundação Cultural, dizia eu. O Mercer, Sérgio Mercer. Vocês não sabiam? E tem mais: vão mostrar todo o seu currículo, onde começou na propaganda, todas as agências por onde passou, quais fundou e quais ajudou a afundar. Vão dizer que tinha toneladas de discos de vinil, a maioria de jazz. Que gostava de tudo e lia de tudo. Adorava a família. Vão dizer que na década de 70 descobriu, ali na esquina da Mateus Leme, pertinho da P.A.Z., um boteco com o melhor cachorro quente da cidade.
— Huuummmm. Eles vão fazer tudo isso? 10 anos depois? O Tataio que não me apareça com o Gol camuflado de bar. Agora não precisa camuflar mais…
— Eu queria escrever alguma coisa diferente, Mercer, o que você acha?
— Eu acho muita graça em tudo isso. Pode escrever o que quiser. Eu não tô nem aí.
— Pensei em falar que você era estelionatário. Passava cheques sem fundos. Espancava as filhas. Deixava a Marica de castigo nos fins de semana. Que era viciado em naftalina. Tinha quilos e mais quilos de naftalina espalhados pelas gavetas. Atrasava o salário dos funcionários e ia para Paraty descansar. Concorda?

— Concordo. E acho que pode até piorar o texto. Dizer que eu tinha caspa, chulé, unha encravada, frieira, medo de assombração. Que eu não era de Tibagi e sim de Piraí do Sul. Que meus pais nunca tiveram filhos, Éramos todos adotados, parecidos, mas adotados. Diga também que eu tinha apartamento exclusivo no antigo Quatro Bicos. E era primo da Otília, Lembra da Otília?
— Pô, mas assim você vai acabar arrasado!
— Diz aí que eu não sabia nadar! Isso! Que eu fumava pra me exibir! Que achava Astor Piazzolla uma bosta. Estragou o tango, com aquelas modernices bobas. Pode botar também que achei Buenos Aires um grande cortiço! Mijei ao meio-dia na Plaza de Mayo com todas aquelas mães chorando pelo desaparecimento dos filhos. Que vomitei no avião na volta e não deu tempo pra pegar o saco e a coisa toda foi pra cima da Marica! Cafetão! Isso! Diz que eu era cafetão e tinha um monte de meninas trabalhando pra mim naquelas boates da Praça Osório! Exagere, Soldinha, não seja bobo. Diga que eu comprei minha carteira de motorista em Joinville! Mencione o fato de sair sempre torto do Jangil e tomar banho no repuxo da praça em frente. Diz que desfilei de cuecas pela Boca Maldita, num sábado a tarde e fiz questão de não falar com ninguém.
— Pô, Mercer, eu pensei em algo mais ameno, mas engraçado… — Mais engraçado que tudo isso?
— Pode escrever que eu nunca fui na sua casa às três da manhã e gritei “ Solda!” umas quatro ou cinco vezes. Você veio atender a porta, eu de táxi, paguei o chofer, tirei meu paletó e minha gravata e dei ao motorista. Já entrei cantando na tua casa.
— Huummmmm… Verdade.
— Que você tinha um cinzeiro em forma de sax e eu fiquei até seis da manhã tocando jazz no cinzeiro na sua sala e depois dormi no quarto da Sandra, numa cama de campanha e que você ouviu eu cantarolar até dormir, em inglês. Pode dizer também que todas aquelas músicas e paródias que fizemos juntos eram de um negão que cuidava de carros ali perto do edifício Asa. Paguei uma mixaria. A Marcha do Porco Chovinista, na verdade, quem compôs, foi a Marica, quando voltávamos de Piraí do Sul e eu não a deixei dirigir.
— Isso não está me cheirando bem, Mercer. O pessoal vai ficar magoado…

— Ah! Ah! Ah! Hu! Hi! O verdadeiro dono do Bar Rei do Siri era eu, e a Lurdes, a garçonete, era telefonista de uma famosa empresa da cidade durante o dia. Eu fazia os acrósticos pra ela em casa durante o dia e depois fingia que escrevia na hora. Ela fazia cara de espanto, mas já sabia de tudo. Diga que mijei nas calças na frente do Sérgio Reis, na Umuarama, tomei um táxi e fui até o Bar Cometa e prometi a todos beber até morrer. Não consegui. Desminta algumas coisas. Diga que eu nunca tirei bispo pra dançar porra nenhuma, que eu nunca liguei para a Marica ir me buscar na Rodoviária de Ponta Grossa àquela hora da madrugada. Eu nem gostava de Ponta Grossa. Preferia Castro, tomar banho de terno no Rio Iapó, ficar tomando sol numa bóia, que era câmara de pneu de trator. Diz também que eu tinha medo de andar de charrete. Não conseguia mascar chicletes e subir escadas ao mesmo tempo. Mal sabia assoviar. Que eu batia muito no Tataio, aquele desgraçado, safado de uma figa! Que nos encontramos, eu você e o Tataio no Clube Curitibano e ninguém sabia o que estava fazendo lá, tomando aqueles uísques 12 anos e os garçons ao nosso inteiro dispor. Ah! Ah! Ah! Hu! Hi!
— É. Eu até hoje me lembro vagamente, amnésia alcoólica. É de doer.
— Pior que a ressaca física era a ressaca moral, lembra?
— Se lembro! Quer dizer, lembro com uma espécie de névoa…— No meu velório eu só fiquei quietinho porque a nobreza exigia. Entendeu? O Ernani Buchmann incomodava muito. Ele sempre me localizava e me levava pra casa. Safado! Outra coisa: escreve aí que eu gostava de ir pra praia com as primas, sem ninguém desconfiar. Desminta também que juntávamos gente no Bar Kapelle ou onde estivéssemos fazendo Ray Connif em Besame Mucho. Diga que era um coralzinho mixuruca…
— Puxa Mercer, você quer acabar com a sua fama… Foi o seu irmão quem o aconselhou a parar de beber?
— Sim. Ele disse: Sérgio. Pare agora. Eu fiquei arrepiado e parei.
— Eu estou há 6.205 dias sem botar uma gota de álcool na boca.
— Nem cerveja sem álcool?
— Nada. Cerveja sem álcool? Por que? Eu bebia pra ficar bêbado. Tem um amigo meu que diz: cerveja sem álcool, café sem cafeína, mulher sem vagina. He! He! He! Lembra quando a Marica teve aneurisma cerebral e eu fui lhe visitar na agência? Você estava preocupado. Eu falei: Mercer, nossas mulheres são corajosas. Nós vamos antes delas.
— Batata!
— Mais alguma coisa, Mercer?
— Sim, Eu sinto não ter lançado os seus livros pela Fundação Osíris de Brito.
— Quando foi que nos conhecemos?
— Nós sempre nos conhecemos, há várias encarnações. Numa encarnação eu fui um monje trapista. Deu muito trabalho. Não podia falar. Lembra?
— Eu fui prostituta em Londres em 1800. Dei muito o que falar. Sem trocadilho.
— Vou fingir que não sei da homenagem então. Quando acontecer, me emociono, quase desmaio e morro de rir. Êpa, não posso morrer de rir. Vou viver de rir, então!
— Combinado. Boca-se-siri total. Você não conversou comigo e eu não o vejo desde 1996, certo?
— Certo. Me finjo de morto.
— Ah, outra coisa: a maioria do pessoal que vai lhe prestar homenagem também deixou de beber. Todo mundo de Grapete!
— Grapete não existe mais, Solda!
— Que seja Fanta uva, então. Crush?
— E muita empada do Caruso.
— Estão lhe tratando bem aí, Mercer?
— Melhor impossível. São todos uns anjos comigo.
— Até a homenagem, então.
— Até, amigo velho. Espalhe também que eu tinha mau hálito. Isso pega mal pra caralho. Ah! Ah! Ah! Hu!
— Tem saído muito? Deixam sair aí?
— Quase todo sábado eu vou ao Mercado Municipal olhar os temperos. Mas o pessoal finge que não me vê!
— Fica combinado assim: quando nos encontrarmos de novo, faremos sopa de cambuquira, nem que tenhamos que promover uma revolução.
— Não precisa. Sou muito amigo do filho do dono de tudo. Gente fina.

20 de fevereiro|2006

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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