Ele aparece todos os dias

Quando entrei na escola Jesuíta de Porto Alegre, a Companhia de Jesus tinha como prepósito geral o padre basco (assim como Santo Inácio – Iñigo no idioma deles – de Loyola) Pedro Arrupe. Arrupe foi, ao lado de Ratzinger, um dos principais relatores do Concílio Vaticano II, convocado por São João XXIII, implantado por São Paulo VI e que está sendo complementado pelo Papa Francisco, motivo pelo qual é tão incompreendido por alguns católicos, que não entendem muito bem da sua fé, pelos menos na minha modesta visão, sem querer ofender a quem quer que seja. A vida da Igreja Católica levou Arrupe e Ratzinger a se afastarem e a se desentenderem várias vezes. Cada um com suas certezas. Não há nenhuma culpa a ser atribuída a qualquer dos dois. Viveram no século XX, mas Arrupe era um homem do século XXI e Ratzinger do século XIX. Eu, no que me toca, sempre torci por Arrupe, muito embora tenha profunda admiração pelo intelecto e bondade do Santo Padre Emérito Bento XVI.

No leito de morte, em 1991, Arrupe disse “precisamos ver Deus em tudo”. Passei a tentar ver essa verdade todos os dias da minha vida, confesso que nem sempre consigo, eis que, como membro da espécie humana, sou um pecador, nenhum grave, ao que me consta.

Pedro Arrupe, além de padre, era médico e na sua Terceira Provação foi encaminhado ao Japão (seu sonho desde que entrou na Companhia de Jesus). No dia 6 de agosto de 1945, explodiu a bomba atômica em Hiroshima. Ele morava no Mosteiro Jesuíta de Nagatsuka, a seis quilômetros de Hiroshima. Assim que a bomba explodiu e ele viu o imenso cogumelo que ela formou, se dirigiu à Hiroshima e montou, numa Capela da Companhia de Jesus, um hospital. Não tinha instrumentos cirúrgicos e nem anestésicos e remédios, a radiação corria solta, mas ele passou a operar os sobreviventes feridos com uma tesoura velha. Tratava as queimaduras de vários graus com panos que mandava lavar. Usava como anestesia um pedaço de madeira que colocava na boca daqueles que operava. Salvou mais de uma centena de pessoas.

Os padres jesuítas me ensinaram Santo Inácio de Loyola e Pedro Arrupe. Como sou Paulo, também me ensinavam sobre o santo do mesmo nome, de quem aprendi que se não credes na ressurreição dos mortos, toda a tua fé terá sido em vão.

Virei fã de Santo Inácio, de São Paulo e do Padre Arrupe. Aprendi com eles que Jesus aparece na nossa vida todos os dias, afinal tudo é obra de Deus, como disse Arrupe, do que aprendeu com Santo Inácio de Loyola e com São Paulo de Tarso. Às vezes, Jesus aparece feliz, noutras vezes surge carregando a cruz. Meu aprendizado foi reforçado, na época em que comecei a entender o mundo, com os ensinamentos do quase-Santo Dom Hélder Câmara, de Paulo Evaristo Arns, dos primos Lorscheider (Aloísio e Ivo), de Luciano Mendes de Almeida, de Pedro Casaldáliga, de Tomás Balduíno, de Cláudio Hummes, de Júlio Lancelotti e do Papa Francisco e de tantos outros que seguem o mesmo caminho. Fortaleci quando conheci Raquel, de quem sou viúvo, tenho certeza da sua ressurreição, assim como de todos os que já partiram, que era uma católica muito melhor do que eu.

É a mais pura verdade e, ao menos para mim, Jesus aparece todos os dias, das mais variadas formas. No sorriso do meu filho Bruno, quando acorda todas as manhãs e me dá bom dia. No mesmo sorriso que exala durante vários períodos do dia e quando dá boa noite. Nos pássaros, cujo canto me desperta todos os dias antes da seis da manhã. No meu cachorro Xiquinho (homenagem ao Papa Francisco), quando me pede pão quando estou tomando o café da manhã. Na beleza dos rios, dos mares, das montanhas, das florestas, das praças, dos parques e de tudo o mais que Deus deu aos homens para que utilizem o livre arbítrio em suas vidas.

Jesus Cristo aparece de várias formas. Certa feita, eu estava no Duomo (Catedral) de Milão, onde havia rezado na cripta de Dom Carlo Maria Martini, outro jesuíta de quem tenho profunda admiração, e quando saí do templo, Jesus apareceu na minha frente. Para minha surpresa era muçulmano e me pediu dinheiro para comprar comida. Entendi perfeitamente que era Jesus, pois ele, filho de Deus, está presente em todos aqueles que formam os povos do Livro.

No domingo agora, depois de ouvir a parábola do Bom Samaritano, Jesus apareceu de novo. Antes de chegar em casa comprei uma broa de milho, tamanho grande, para tomar um café preto e comer uns bons pedaços da mesma no horário da tarde com queijo da Serra da Canastra. Entrando no prédio, Jesus apareceu carregando uma grande e pesada cruz, na figura de um drogado (provavelmente crack) e me pediu um prato de comida. Na frente do condomínio, temendo que algum morador mandasse o porteiro afastá-lo dali, não tinha como subir e preparar um prato de comida para Jesus. Lembrando do bom homem de Samaria, entreguei a broa, inteira. Ele não acreditou, provavelmente já tinha ouvido vários nãos durante a manhã. Atravessou a rua, sentou no meio-fio, abriu o pacote e começou a saciar a fome. A cruz que carregava ficou um pouco mais leve.

Falei acima no Padre Júlio Lancelotti. Ele é um dos maiores felizardos sobre o planeta Terra. Para ele, Jesus aparece todos os dias em centenas de personagens. Sei bem o que é isso, durante 21 dias em que fiquei no Erasto Gaertner, acompanhando Raquel, até o desenlace final, vi centenas de “Jesuses Cristos”, todos carregando pesadas cruzes. Não podia fazer nada por eles, assim como não pude fazer nada por Raquel.

Na Internet, está correndo um abaixo assinado para que concedam o Prêmio Nobel da Paz ao bom padre Júlio. Já assinei, e convido a todos que o façam.

Enquanto isso, aqui em casa, depois de escrever este texto, vou brincar com o meu filho Bruno. Seu sorriso é prova viva de que Jesus vai aparecer mais uma vez hoje à noite. Até amanhã, quando vai aparecer de novo. Ele aparece todos os dias, a gente é que, às vezes, não percebe.

O Papa Francisco disse, certa feita, que é preferível viver como ateu do que ir todos os dias à Igreja e passar a vida a odiar o próximo.

O ateu José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, certa feita foi perguntado: “Como podem homens sem Deus serem bons?”. Respondeu com outra pergunta: “Como podem homens com Deus serem tão maus?”.

*Paulo Roberto Ferreira Motta faleceu no dia  26 de abril de 2023

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Paulo Roberto Ferreira Motta e marcada com a tag , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.