Espada no bucho

Bucho, a dobradinha da culinária tradicional brasileira, nada tem a ver com o feito deste capítulo. Serve apenas para descrever o local em que o instrumento cutucou o corpo da, como diriam os sanguíneos jornais daqueles tempos, indigitada vítima.

Estabeleça-se desde logo o local do duelo, havido na Curitiba dos anos 1980, em Santa Felicidade. Com justificada fama, estava lá instalado um restaurante chamado Costela do Amantino, em que eram servidas porções generosas da iguaria, a desmanchar na boca dos fregueses como manjares dignos de paxá.

Constava da lenda urbana ter o bíblico Adão, conhecedor profundo das virtudes costelares, provado e aprovado com louvor o assado em epígrafe.

E Amantino, o costeleiro, quem seria? Soube-se depois que se tratava de um sobrevivente da 2ª Guerra, a recordar como o personagem de Fernando Brant e Milton Nascimento, em Conversando no Bar, da campanha da Itália e do tiro, que levou. Ou não.

Hermann Sheffield, amigo meu, trabalhava à época em uma empresa de publicidade, conhecida também por feitos cívicos, entre as quais dar feições à Campanha das Diretas Já. Tudo era motivo para que se comemorasse, eis que o país estava em vias de reencontrar a democracia.

O cenário era perfeito. Na costelaria todos se lambuzariam, a carne era farta como personagens de Federico Fellini. Os brindes seriam erguidos, os copos tintilariam. A noite prometia a glória.

Os romances de Capa/Espada mostram que em tais horas surge o mocinho, libertador da jovem mantida em algum cativeiro insalubre como pena por seu amor maldito. Eis que ele se materializa no ambiente.

Não na forma de um príncipe encantado, mas na de um office-boy, já dominado por algumas caipirinhas e estimulado pela porção subversiva daquela empresa, o pessoal da área criativa.

O herói sobe na mesa em que eram servidas as porções da Eva e se dá ao direito de pronunciar um discurso. Eram poucas palavras, ainda que de fundada importância. Do alto daquela pirâmide, ou melhor, da rústica plataforma, entoa seu grito de guerra:

     “Está criado o Partido Socialista Operário dos Offices-boys do Brasil”.

As batidas das mãos sobre a mesa mambembe fizeram tremer o chão: eram pequenos aplausos bêbados. Alguns gritaram “apoiado”, outros riram. Uma cena de pastelão, não fosse a reação do nervoso proprietário do pedaço. Aos berros, exigiu a derrubada do rapaz, a dizer, sua saída da napoleônica posição sobre a mesa.

Hermann, homem precavido, nada voltado aos prazeres dionisíacos, tomado pela indignação dos justos, enfrenta de peito aberto aquele suserano das costelas.

O agressor recuou de forma estratégica para se colocar atrás do balcão. Do fundo da churrasqueira, puxou um espeto e desferiu a ameaça nos intestinos do desarmado Hermann Sheffield.

Bem, vamos concordar: na história da literatura jamais alguém usou expressão tão tacanha como “desferiu uma ameaça”. Desfere-se golpes, como se sabe.

O intimorato homem das letras, encurralado entre paredes, nada disse, nem tempo houve para tanto. O filho do espadachim entrou em ação, convenceu o pai a devolver o florete às profundezas do fogo e deu por encerrada a ameaça. Inclusive o festim do office-boy.

Ao pobre Hermann, além de sua parte no repasto, restou a humilhação de pedir um banheiro. Aqueles do restaurante não serviriam ao propósito, estavam submersos pela incontinência urinária da freguesia. Então, no reservado do próprio soldado das forças brasileiras, nosso herói sentou aliviado. Sem precisar fazer força, assistiu à debandada das suas entranhas, apavoradas pela ponta daquele espeto assassino.

*Ernani Buchmann

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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