Essencialmente nazista

Livro mostra que adesão de Heidegger a Hitler foi bem mais profunda do que se pensava

Um autor pode ser moralmente problemático —”do mal”, se é lícito tomar emprestada a terminologia infantil— e produzir uma obra relevante? Vivemos em uma época que parece julgar antes de pensar, mas não é porque nossa época faz isso que somos obrigados a seguir-lhe os passos. E nenhum autor se presta melhor a provocar esse tipo de reflexão do que Martin Heidegger (1889-1976), o filósofo nazista.

“Heidegger in Ruins” (Heidegger em ruínas), de Richard Wolin, é uma obra devastadora. Wolin se debruça sobre os chamados “Cadernos Negros”, publicados a partir de 2014, uma espécie de diário em que Heidegger anotou seus pensamentos, e outros materiais só recentemente divulgados, como a correspondência com o irmão Fritz, e mostra que o nazismo e o antissemitismo são indissociáveis da obra do pensador alemão.

Se, até a década anterior, admiradores de Heidegger ainda podiam descrever seu envolvimento com o nazismo como oportunismo ou desvio de caráter, que não afetava os fundamentos de sua metafísica, fazê-lo agora tornou-se bem mais difícil. É o próprio Heidegger, afinal, quem anota que o desenraizamento (“Bodenlosigkeit”) do povo judeu o aproximava do não-ser, não havendo alternativa que não o seu aniquilamento (“Vernichtung”). Ele também sugere que o problema do nazismo foi não ter sido radical o bastante.

O livro de Wolin vai aos detalhes, a ponto de tornar-se repetitivo. O tom tem algo de inquisitorial. O resultado não é bom para Heidegger. Mas Wolin faz questão de dizer que seu objetivo não é cancelar o alemão, que pode e deve ser lido. Se ele ainda hoje influencia figuras detestáveis como Steve Bannon e Aleksandr Dugin, também foi importante para um séquito de autores como Sartre, Beauvoir, Foucault, Derrida, cujo pensamento tem alguma relevância. Wolin pode ser duro com o alemão, mas está fazendo o que na faculdade de filosofia chamávamos de história das ideias.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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