Medo avião, modo avião

Mudei uma vogal e minha vida mudou

Uma vez perguntei ao saudoso Contardo Calligaris o que eu poderia fazer para voar melhor. Não queria mais usar Rivotril, mas ficava petrificada na fila de embarque do aeroporto.

Ele disse que eu precisava de uma recompensa, um prazer, um mimo, algo que eu amasse demais e que fosse, de certa forma, uma espécie de “pecadinho” ao qual eu me permitiria naquelas terríveis horas de negociação com minha neurose. Entendi que tinha de burlar meu cérebro, bugar o sistema. Enfiar um gozo proibido no lugar de uma tarefa indigesta. Contardo disse que se eu estivesse de regime, por exemplo, valeria levar o mais prazeroso e calórico dos chocolates.

Nunca tive fome em momentos de pânico, muito menos por doces. Dos pecados de que realmente gosto, boa parte envolve crimes contra a decência pública ou sujeitos barrados (pela moral, pela igreja, pela lei, pelo inconsciente, pela falta, pelo desejo, por ele mesmo, pela licença poética, pelo alívio cômico, pela mais completa falta de noção do que é um sujeito barrado). De toda forma, nada disso caberia na bagagem de mão.

Também gosto da sensação de transgressão e perversão que é torrar todo o meu dinheiro especificamente quando não tenho nenhum. Certa feita, nervosa para embarcar em uma ponte aérea no exato dia em que fui demitida da Globo, entrei numa HStern e me dei um anel tão espalhafatoso que depois, envergonhada em exibi-lo, o troquei por seis pequenas joias (que uma pessoa em estado normal poderia comprar; jamais de uma única vez).

Nas últimas semanas, viajei algumas vezes de avião, e algo estranhíssimo aconteceu: senti zero medo. Fazia pelo menos 20 anos que eu não viajava tão despreocupada e relaxada. Aliás, fazia no mínimo dez anos que só viajava com a ajuda de algum calmante. Dormi como as crianças dormem, com aquele pescoço completamente solto, a boca com uma baba seca no canto. Um amigo me pediu um pouco do que eu tinha tomado. Mas era nada. Zero. Teve bastante turbulência, alerta laranja de tempestade, e eu adorei, porque as tremidas me deram uma sensação gostosinha de parque de diversões. Parecia que eu tinha deixado minha mente em casa e viajado no corpo de uma surfista. Estava na maior paz que já senti na vida.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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