Etnografia de galinheiro

Por que não se vê mais ninguém de caspa na lapela, coçando o saco ou chutando tampinhas?

Em coluna recente (“Modernidade do guaraná de rolha“, 25/6), gabei-me de já ter sido exímio chutador de tampinhas. Um leitor, o publicitário Kiko Mazziotti, não se impressionou e perguntou se eu chegara a atingir o estado de arte desse esporte. Consiste em, com a tampinha virada para cima, pressionar sua borda com um golpe seco do sapato, obrigando-a a decolar e, dando uma matada que a trazia para o peito do pé, fazer embaixadas com ela. Lamento confessar que não cheguei. Eu temia isso —que alguém se lembrasse dessa façanha que nunca consegui realizar.

Por sorte, ninguém mais chuta tampinhas e menos ainda se exibe fazendo embaixadas com elas —talvez por falta de tampinhas nas calçadas ou porque seus antigos praticantes optaram por outras modalidades. Ou também porque o mundo evoluiu e muitos costumes foram abandonados, alguns há tanto tempo que devem ser incompreensíveis para os leitores de hoje.

Raros, por exemplo, são os rapazes que ainda param na rua para pentear o cabelo. No tempo da brilhantina, era obrigatório aproveitar cada parada numa esquina para tirar o pente do bolso e, sem precisar de espelho, levá-lo à cabeça e pôr o topete no lugar. Os estudiosos apontam dois motivos para isso: o desprestígio do pente e a superação do topete. Da mesma forma, já quase não se veem pessoas andando com as mãos nos bolsos, dando bananas para um desafeto ou coçando o saco. Fazendo fiu-fiu, então, nem pensar.

Para onde foram os casais que andavam de braços dados? Por que ninguém mais leva o paletó no ombro no primeiro dia de verão? Que fim levaram as lapelas adornadas com fumo para indicar luto? E as polvilhadas de caspa? Atenção: isto não é saudosismo bobo. É etnografia urbana, mesmo que de galinheiro.

E, a provar que até os mais arraigados costumes estão desaparecendo no Brasil, já quase não se vê alguém fumando em público. Só maconha, claro.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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