Fachadas x fundações nos meus sonhos

Me arrasto até voltar a andar distraída

Primeira foto: meus dentes escancarados parecem projetar um filme da minha imensa satisfação. Eu mesma, ao observar a foto postada antes de dormir, penso: “caceta, como tô feliz”. Estou agarrada a amigos e claramente vivemos uma madrugada de flertes e dancinhas. A foto informa: como é boa a vida dessa garota, como ela é feliz com seus comparsas e com essa camisa de seda que ganhou para fazer uma publi.

Naquela noite, sonho que carrego uma mochila vazia e uma frase não me sai da cabeça: “cansaço maciço”. A escada que preciso descer tem degraus “para dentro”, é uma escada “somente de subir”. Meu avô (que eu amava demais e morreu quando eu era adolescente) diz que vai desentortá-la para mim. Mas então ele é humilhado pelo “dono” do prédio, que diz que a escada é assim mesmo e que todo mundo consegue passar por ela. Meus pés estão amarrados por um pano no primeiro degrau, o que aumenta minha vertigem. Minha mãe está comigo e diz: “você pode faltar na escola hoje”. Então eu decido saltar. O pulo, apesar da altura, não me dá medo; o difícil é a descida invertida.

Eu e minha mãe encontramos uma piscina bem quente e cheia de velhinhos no subsolo. Sei que é uma referência ao filme “Cocoon”, que eu via com meu avô (e chorávamos muito, disfarçadamente). Pergunto a minha mãe se podemos entrar todos: eu, ela e meu avô. E então eu poderia enfim sentir alguma coisa que quero demais, mas não sei o nome (relaxar?). Ela, que no sonho não tem dores ou vergonha do corpo, assente. Eu penso: “que saudade insuportável de quando minha mãe topava tudo”. Estou vestindo uma lingerie azul-marinho de renda que não se parece nem um pouco com um biquíni de criança, mas não posso mais “voltar”. É tão fácil escorregar por esse lugar quente e úmido que me lanço de olhos fechados. Então começo a gritar “mãe, mamãe!”, mas percebo que ela desapareceu. Encontro anéis perdidos, que são para dedinhos infantis, mas, por serem baratos, não me importo em procurar a dona (dói sentir isso).

Acordo e sinto medo daquela casa estranha de uma pessoa que não conheço. Demoro longos segundos para perceber que é a minha casa. Sou invadida, no mesmo instante, pela dor crônica no corpo, pelo “elevador de bile com taquicardia” –é assim que eu defino o oposto da sensação que eu teria ao entrar na piscina quentinha com minha mãe e meu avô.

Segunda foto: estou sentada à mesa de um restaurante esperando-o voltar do banheiro. Me arrastei para esse encontro, porque é assim que eu sempre faço para seguir com a vida: me arrasto até voltar a andar distraída. Para minha surpresa, ele é interessante, e estou quase sorrindo. Faço uma selfie para lembrar de nunca desistir. Minha tristeza momentaneamente adiada combina com aquelas paredes de madeira intercaladas com espelhos. Posto a foto porque pareço altiva, recuperada, equilibrada.

Sonho que eu e meu ex-marido estamos pendurados para fora da janela de um prédio alto. Nossa roupa é de velcro, e do céu caem pequenos braços, pernas, troncos e cabeças de brinquedo. Se colarmos um número grande dessas partes desmembradas de corpos em nossas roupas podemos trocar por um ser humano de verdade que será nossa filha. Parecemos nos divertir com o jogo, mas sabemos como a vida é macabra e estamos juntos neste pavor –socialmente disfarçado– de perder qualquer segundo de atenção e, assim, perder a filha. Começam a cair crianças reais do céu, e eu pego todas que posso. Na minha frente está uma mulher cuja roupa não tem pedaços colados e em cujos braços não há humanos pendurados.

Tento entender o que ela faz ali e então sinto falta de ar. Acordo com a cara afundada no travesseiro.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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