Fez voto de silêncio no intuito de proteger suas conquistas dos invejosos

Mas o esforço constante para calar a boca a consumi-a como uma vela de despacho

Esta é a história de uma mulher que falava demais. A famosa boca de sacola, que ostentava intimidades para porteiros e motoristas de aplicativo e transmitia em tempo real cada passo errático de sua vida nas redes sociais. Até o dia em que ela se viu diante da expressão “calada vence”, repetida à exaustão por coaches e lacradores na internet.

Ao tentar aplicar o conceito na prática, não sabia o tamanho do desafio que estava prestes a encarar. Fez um voto de silêncio no intuito de proteger suas metas e conquistas da inveja alheia. Já queimou a largada, dividindo com seus seguidores uma postagem enigmática com a hashtag #caladavence.

Só depois se deu conta de que bradar “calada vence” aos quatro ventos era expor os seus planos de não expor os seus planos, um ato contraditório que poderia botar tudo a perder. Apagou o post certa de que falando menos e fazendo mais sua energia se voltaria para o que realmente interessa. Mas o esforço constante para calar a boca passou a consumi-la como uma vela de despacho.

Convencida de que o silêncio era seu amuleto da sorte, privou-se de comemorar pequenas vitórias e reclamar de grandes frustrações até com seu núcleo mais íntimo. Colecionando segredos sob sua língua de lápide, tornou-se uma companhia apática, sem vontades e novidades.

Diante de uma oportunidade de trabalho, foi questionada pela recrutadora sobre onde queria estar cinco anos à frente. Permaneceu calada, orgulhosa por ter passado no teste. Só não passou na entrevista de emprego, mas tudo bem. Algo maior estava guardado para ela. Guardado, pelo visto, a sete chaves, com tranca, corrente, cadeado e código de segurança criptografado.

Mesmo criticando a superficialidade da cultura da imagem, seguia profundamente afetada por ela. Em um mundo que confunde visibilidade com sucesso, cada vez que engolia em seco sentia o gosto amargo da derrota.

Observou todos à sua volta vencendo verborragicamente. Já não confiava em ninguém, nem no próprio processo. Sem poder culpar a inveja alheia pelos próprios fracassos, decidiu quebrar o silêncio com uma verdade difícil de engolir: caladas também perdem.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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