Devo ao ministro, a Cappelli e a alguns outros o retorno a um país que ainda existe
Em 6 de janeiro de 2021, eu me encontrava no sul da Bahia, nas primeiras férias praianas permitidas pelo arrefecimento da pandemia. De lá, assisti à invasão do Capitólio americano pela internet, me perguntando como era possível que Washington e Trancoso coexistissem no mesmo planeta.
O Capitólio caipira de 8 de janeiro uniu os dois opostos. Eu também o acompanhei de longe, numa Europa ameaçada por outra guerra, com Zelenski e Putin dominando a grade do noticiário internacional. Pária global, o Brasil era nota de rodapé na programação e tanto a BBC quanto a CNN ofereceram uma cobertura curta, repetitiva e genérica do levante no DF.
Talvez a distância tenha me feito desatenta, mas os canais brasileiros também se desdobravam em análises, comunicados e coletivas, sem oferecer nenhuma narrativa íntima dos que comandaram o barco legalista na tempestade.
Devo à Patrícia Campos Mello o link de uma entrevista de Flávio Dino aos jornalistas Tereza Cruvinel, Rodrigo Vianna e Marcelo Auler, no canal Brasil 247 do YouTube, verdadeiro decálogo sobre como evitar um golpe.
“Essas histórias devem ser contadas porque, depois, elas se perdem no tempo”, alerta o ministro na conversa. E é o que faço aqui, para esquentar os motores da volta à ativa e para sublinhar o que não deve ser esquecido. Com a palavra, Flávio Dino:
“Na posse do presidente Lula, o acordo operacional funcionou muito bem. O que muda no dia 8 de janeiro? O comando. O comando mudou a orientação. O ministro José Múcio foi ao quartel-general do Exército, tudo tranquilo. Até as 13h30 do domingo, as mensagens que recebi pelo celular foram as mesmas que o Senado e a Câmara receberam do Governo do Distrito Federal, que tem o dever constitucional de garantir a ordem pública. Ou seja, todo mundo foi enganado.”
“O ataque começou às 14h40; 15h15 eu estava entrando na garagem. Quando olhei pela janela do gabinete, primeiro me espantei, porque era uma cena inesperada, depois senti uma profunda indignação. Eu não cometeria o ato vergonhoso, eu não me perdoaria nunca, de assistir a uma tentativa de golpe de Estado e não fazer nada.”
“Destruíram vidraças no Palácio da Justiça, jogaram pedras, bolas de gude de ferro. Durante uma hora e meia não se via policial na Esplanada. A adrenalina vai num nível que você começa a tomar decisões. Agi das três da tarde às três da manhã, 12 horas de pé. De vez em quando eu olhava aquilo e dizia: e se o povo invadir? Como é que vai ser?”
“A rápida decisão de decretar intervenção federal e assumir o comando da segurança do DF foi o que impediu o golpe. Em 1964, não havia o WhatsApp. Nós fizemos uma intervenção federal por WhatsApp, a ferramenta que municiou os golpistas.”
“- Presidente, assine e me mande a foto, porque decreto no meio dessa emergência vale!”
“- Mas não tem número.”
“- Presidente, me dê o decreto com a sua assinatura!”
“Mostrei o documento ao secretário Ricardo Cappelli e disse para ele descer e assumir o comando da PM do DF. E houve a coragem pessoal do Cappelli, o papel do indivíduo na história. Porque ele poderia ter me pedido outra coisa, ele tem filho para criar, mas o Cappelli desceu, foi atrás do comandante da PM e saiu puxando, ele e o secretário Diego Gaudino andaram com a PM até o quartel-general do Exército, no Setor Militar Urbano, levando a horda de terroristas para longe da Esplanada.”
“Havia uma ideia de que a ordem era só para desocupar os prédios.”
“- Não, eles estão em flagrante e nós vamos prendê-los! –eu disse. E abri o Código do Processo Penal no celular; – Está aqui, qualquer pessoa do povo PODE e o agente público DEVE prender quem está em flagrante.”
“No Brasil, os golpes de Estado procuram poupar uma aparência de legalidade. Em 1964, os ministros do Supremo não foram cassados. A invasão do STF gerou um problema de ilegalidade, o Supremo se indignou, começou a dar ordem e a juridicidade se impôs por sobre a violência.”
“Eu não me lembro de, numa sala, estarem os chefes dos Três Poderes, os ministros do Supremo e todos os governadores. E todos desceram a rampa com o presidente da República, atravessaram a praça e chegaram ao Supremo. Esse símbolo nos ajuda a desideologizar as Forças Armadas e policiais, que foram largamente capturadas pelo extremismo.”
Flávio Dino já havia dado provas de caráter e competência à frente do governo do Maranhão, durante o descarrilamento negacionista pandêmico. Depois dessa entrevista, minha sensação é a de que devo a ele, ao Cappelli e a alguns poucos o retorno a um país que ainda existe.
Deixo, aqui o link da entrevista completa e clamo pelo minuto a minuto do domingo do Cappelli, no Brasil 247.