Felipe Pena faz um exercício psicanalítico: “Podemos concluir que a acusação freudiana tem um atenuante forte: o presidente é o real e legítimo proprietário da casa 58. Imagine se ele tivesse apenas visitado o lugar, como fez outro presidente em um certo triplex no Guarujá?”
As provas reunidas no inconsciente dos criminosos ainda não são aceitas em tribunais. Embora a psicanálise, assim como a polícia, também realize um trabalho de investigação, as conclusões retiradas de atos-falhos e recalques têm pouco valor para o positivismo dos juízes. Mas vamos pedir vênia aos colegas do direito para fazer um pequeno exercício psicanalítico.
Imagine que a maior emissora de TV do país tivesse acesso aos registros da portaria do condomínio onde mora o assassino de Marielle Franco. Pelos registros, na noite do crime, o homem que dirigiu o carro para o assassino chegou ao condomínio poucas horas antes do homicídio, mas, em vez de se dirigir à casa do comparsa, disse ao porteiro que iria para um vizinho.
Agora vamos elevar a imaginação a níveis surreais. Tente pensar que esse vizinho é o atual presidente da República. Eu sei, é inverossímil, nenhum presidente moraria a dez metros de um assassino. Mas vamos fazer o exercício e supor que, logo após ver a reportagem na TV, o presidente fosse a uma rede social esbravejar contra a emissora. Novamente soa irreal, pois um presidente jamais usaria um veículo extraoficial para responder a esse tipo de notícia. Mas vamos supor que, além de responder, ele ainda tenha cometido um ato-falho passível da mais óbvia interpretação freudiana.
Vamos supor que o presidente da República, sem ser perguntado, tenha dito: “não vão sossegar enquanto não prenderem um filho meu”. Como assim, presidente? Que filho? Ninguém falou em filho algum. O assunto aqui é o registro do porteiro do seu condomínio. O assunto é o anúncio do assassino dizendo que iria à sua casa. De que filho o senhor está falando?
Ainda no campo das suposições, vamos imaginar que um desses filhos more no mesmo condomínio do pai e, diferentemente de seus outros dois irmãos políticos, não tenha imunidade parlamentar. Vamos supor que ele se apresse em revelar, também numa rede social, os registros em áudio da portaria. Pra que isso, garoto? Esses arquivos podem ter sido adulterados? “Podem não, eles foram periciados” – responderia o filho pródigo.
Oi? Periciados por quem? E, com mais um toque de surrealismo, as promotoras do caso aparecem no dia seguinte para dizer que, de acordo com a perícia, o porteiro mentiu. Quanto tempo durou a perícia, doutoras? Vinte e quatro horas, respondem as nobres representantes de MP, uma delas flagrada com a camisa de campanha do presidente em outra rede social. Como a justiça é rápida!
Nesse nível de surrealismo já não seria surpresa se um jornal paulista descobrisse que a perícia não foi realizada com precisão. Mas surreal mesmo, surreal de verdade, surreal nível salvador Dalí seria o próprio presidente da República dizer que teve acesso aos áudios “no dia do assassinato, antes de eles serem adulterados”. Opa! Aí, não. O presidente não confessaria o crime de obstrução à justiça. Até o ato-falho tem limites.
Poderia ser pior. O presidente poderia ser um conhecido apoiador de milicianos, os mesmos que são acusados de matar a vereadora. Um de seus filhos poderia ter empregado parentes desses milicianos em seu gabinete. Poderia até ter condecorado um deles quando era deputado estadual. Não, isso não aconteceria. A psicanálise trabalha com livre associação e, aqui, ela está óbvia demais. Até Freud desconfiaria de tantas evidências.
Só falta dizer que o filho mais novo do presidente namorou a filha do assassino. Ou que o filho vizinho (do pai e do assassino), que também é vereador, havia discutido diversas vezes com a colega assassinada. Isso também é óbvio demais e não prova nada.
Não importa que o filho vereador também seja defensor das milícias. Não importa que o filho vereador tenha um histórico violento. Não importa que o filho vereador tenha usado a gravação de um pedido de Uber como álibi. Afinal, só os acusados precisam de álibis e, até agora, ninguém o acusou. Ou será que Sigmund Freud passaria por cima das próprias desconfianças para apresentar a denúncia?
Como este artigo é apenas um exercício psicanalítico, podemos concluir que a acusação freudiana tem um atenuante forte: o presidente é o real e legítimo proprietário da casa 58. Imagine se ele tivesse apenas visitado o lugar, como fez outro presidente em um certo triplex no Guarujá?
A esta altura, presidente e filho vereador já teriam sido condenados a 13 anos e meio de prisão pelo atual ministro da justiça. Tão surreal que nem Freud se atreveria a explicar.