Heroína, e não vítima da piada

O livro todo é uma delícia e, mesmo depois de finalizado, segue na minha cabeceira

Passei as últimas semanas lendo obras de mulheres espetaculares: duas da Mary Gaitskill lançadas pela Fósforo e a mais recente da Katie Kitamura, que saiu pela Companhia das Letras. Estou ansiosa para resenhá-las, mas hoje sinto que preciso falar de Nora Ephron.

Há pouco tempo, assisti ao documentário “Tudo é Cópia”, sobre a roteirista e escritora, e fiquei fascinada. A mulher que sempre expôs brilhantemente sua vida pessoal e amorosa conseguiu, nas palavras de Meryl Streep, “um último ato privado” ao esconder de todos que estava morrendo. Para quem tiver interesse, o filme de 2015, dirigido pelo filho de Nora, está disponível na HBO.

Minha juventude foi bastante marcada pelo roteiro de “Harry e Sally” e por “Heartburn”, longa de 1986 com aquela música inesquecível da Carly Simon (“And I believe in love/ And what else can I do/I’m so in love with you”). Eu, que era uma jovenzinha na época (vi em fita cassete), sem nenhuma experiência matrimonial, quase me afoguei em lágrimas com a capacidade de Ephron de transformar tanta dor e desilusão em um filme impecável. Naquele dia decidi que trabalharia com cinema —que eu transformaria minhas vivências em textos acho que eu já tinha resolvido desde a infância.

Mas o que eu quero mesmo contar é que o documentário me fez sair feito doida comprando todos os livros dela.

E aqui vai um aviso: ao ler a orelha da coletânea de crônicas “Meu Pescoço é um Horror e Outros Papos de Mulher” ou um textinho sobre a obra no site da editora Rocco, talvez você seja tomado por certo bode existencial. Ali, termos como “lady lit”, “Woody Allen de saias” e algo como “uma Carrie Bradshaw coroa” vão te lembrar que mais de quinze anos se passaram desde que o livro foi traduzido e resenhado por aqui. Hoje em dia pega muito mal —ainda bem!— que uma baita escritora não seja definida tão somente como uma baita escritora.

Ri demais quando, na crônica que dá nome ao livro, Nora diz que “é preciso cortar uma árvore para descobrir sua idade, mas isto seria desnecessário se ela tivesse pescoço”. E ri de novo quando a autora relata que se olha no espelho sempre apertando os olhos, “porque se houver alguma coisa ruim refletida, já estou a meio caminho de fechar os olhos para evitar tal visão”. Esse tipo de verdade bem-humorada sempre me pareceu mais feminista do que a chateação infinita das tantas bandeiras para que a gente ame a nossa maturidade.

Na crônica “Mantendo a Forma”, Ephron reclama que fazer exercícios lhe rouba horas importantíssimas de trabalho intelectual e que não entende quem lava tanto os cabelos. Só a dificuldade de um rótulo de xampu informar apenas que se trata de um xampu já lhe deixa exaurida.

O livro todo é uma delícia e, mesmo depois de finalizado, segue na minha cabeceira. Nada como ir para a cama com uma pessoa que possa rir de si mesma com esta inteligência: “lamento informar que tenho buço, e ele funciona tal como um céu nublado ameaçando chover”.

Em “A História de Minha Vida em 3.500 Palavras ou Menos”, pesquei duas frases para jamais esquecer. A primeira, quando ela explica a diferença entre escorregar numa casca de banana e contar que escorregou: “você se torna heroína em vez de vítima da piada”. A segunda, quando a escritora conclui: “não consigo compreender por que alguém escreve ficção quando o que de fato ocorre é muito mais surpreendente”.

Por fim, em “Sobre o Enlevo”, Nora Ephron nos conta como se sente quando lê algo que transforma seu dia e sua vida. Bem, é justamente enlevada que eu fico ao entrar em contato com seus roteiros e livros.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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