Hoje não tem texto

Oi Beatriz, te escrevo pra dizer que hoje não tem texto. Tentei falar com o Sérgio, mas não consegui. Você avisa aí, por favor? Eu juro que tentei escrever. Criei uma personagem para uma crônica meio conto, chamada Clara. Clara vai até a sua. Passou alguém e a xingou, ser clara não combina com o Brasil. Criei uma personagem para um conto, chamada Ana. Ana vai até a sua garagem quando. Passou alguém e a xingou: é urgente debater a questão dos carros e Ana vai até uma garagem? Ana vai a pé para o trabalho quando. Passou alguém e a xingou, se ela vai a pé e é mulher, certamente alguém iria xingá-la. Ana vai vestida de apicultor dentro da bolha do Michael Jackson para o trabalho e. Passou alguém e a xingou, porque uma mulher que trabalha não representa tantas mulheres oprimidas sem condições de exercer seu ofício. Matei Ana porque em sua tridimensionalidade particular ela ofendia a dimensão de todo o resto e comecei a ficar sem prazo e sem saco. Ainda existe escrever ficção ou toda vez que um escritor tocar uma campainha alguém sairá na porta e ele precisará vender a “Barsa” da benevolência pra não ser apedrejado?

Não sei como vocês fazem numa situação dessas. Se avisam “hoje, excepcionalmente, a colunista nos deixou na mão” (deixar na mão parece piadinha sexual machista? Eu te perguntar se parece piadinha sexual machista parece provocação? Me ajuda?) ou se botam outra coisa no lugar (botar no lugar parece piadinha sexual machista? Eu te perguntar se parece, parece provocação? Me ajuda?). Acho que vocês fazem as duas coisas, né? Se bem que, se for pra colocar outro texto no lugar, que não pareça que cedi o espaço para germinar ou descompor qualquer que seja o lado de qualquer que seja a verdade porque, por Deus, ontem eu espirrei e pedi desculpas e não tinha ninguém em casa.

Eu poderia te dizer que voltei a ter crises de ansiedade horríveis que dificultam, entre outras muitas coisas, cumprir entregas de trabalho. E seria verdade. Eu poderia te dizer que me enchi do som dos meus dedos no teclado, da minha tendinite, da minha mania de colocar muitas aspas e muitos parênteses (pra dar conta de minimizar “os furos do meu discurso”, que tem furos justamente por ser um discurso). Pode falar furos sem parecer provocação? Seria verdade dizer que ando bem cansada. Beatriz, avisa aí na Folha que eu estou com vontade de vender o mundo no site da Enjoei? Você conhece esse site? Se alguém mangar de minha pessoa, fazendo boquinha de muxoxo, explica que eu tentei escrever. Eu até inventei uma personagem chamada Fafá. Ela estava indo ao cinema quando 58 pessoas nuas começaram a arrancar sua roupa e a ordenar que ela, agora, caso respeitasse o ser humano, só andasse pelada. As pessoas entenderam que Fafá, apenas por fazer algumas perguntas (e estar com um pouco de frio), era contra a nudez e contra o respeito pelos humanos. E a xingaram de anta, imbecil, histérica, sem noção. “Respeite as mulheres, sua vaca!”. Rasgaram primeiro sua roupa e depois seu fígado.

Eu poderia dizer que é depressão e seria verdade. Avisa que eu tentei? Até criei uma personagem. Beth precisa ir até a farmácia comprar Dramin. Ela não sabe se o engulho é medo de um dia ser uma velha louca solitária ou de nunca mais ser uma jovem louca livre. Na esquina de sua casa, uma galera usando camisetas a favor do certo deu uma camiseta para Beth. As pessoas entenderam que ela, ao fazer algumas perguntas, era contra a camiseta e contra o certo. Beth morreu enforcada, tentando fazer passar uma camiseta PP por sua goela cheia de coisas entaladas.

tatidois

Tati Bernardi – Folha de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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