Ignorem o presidente

Li que ele liberou academia, barbeiro e manicure, e pensei: que idiota

A unha não tá OK. O cabelo não tá OK. A bunda também não tá OK. Pensei que abriria um champanhe no dia que anunciassem a abertura desses estabelecimentos que nos ajudam a dar um trato na aparência. Quando li que o presidente assinou um decreto que inclui academia, barbeiro e manicure na lista das atividades essenciais, só consegui pensar: que idiota.

Estou um horror. Unhas carcomidas pela insegurança dos tempos e pela falta de cuidados profissionais. Há duas semanas dei uma banana para os exercícios diários em frente à TV e me rendi ao sofá. Quando não estou trabalhando ou dormindo, estou no sofá. Às vezes, também trabalho e durmo no sofá. Se sinto culpa? Muita, mas e daí? Meu cabelo também precisa de tesoura e de hidratação, mas vai seguir desgrenhado, porém vivo, se tudo der certo.

Sinto falta de muitas coisas, como todo mundo. Das pessoas, da rua, de me sentar para um chopinho no Bracarense a caminho de casa, do vento na cara, de avião, de praia cheia. E sinto falta da Monique, da Leticia e do Hans. Monique é minha manicure, Leticia, minha personal. Nos víamos semanalmente há uns três anos. Só cancelo Leticia quando estou sem grana, mas nos falamos mesmo quando o vínculo profissional não está ativo. Meu relacionamento com o Hans é ainda mais longo, lá se vão uns dez anos. Tenho mais tempo de Hans do que de casada. Se um dia meu casamento acabar, Hans continua senhor absoluto do meu cabelo.

Mas foi meu marido quem me salvou com uma caixinha de cera da Depilsam. Não que ele ligue, quem não aguenta sou eu. Se pelo fosse árvore, a Amazônia estaria salva das garras do maléfico ministro do Meio Ambiente. Muita gente reclamando dos conjes, já eu tenho um que cuida das compras, cozinha, aprendeu a fazer pudim e, muito mais importante, a depilar, Brasil. E usa pinça para os pelinhos teimosos. Que homem.

A depilação tá OK. O desprezo pelo presidente tá mais do que OK. A sanidade mental mais ou menos OK. Sigo ignorando o presidente. De tudo o que ele fala ou faz, eu ajo exatamente ao contrário. Saiam nas ruas. Eu fico em casa. É só um resfriadinho. Já sei que é uma doença séria. Não usa máscara. Não saio sem. Aperta as mãos das pessoas. Eu não chego nem perto. Libera academia, manicure e barbeiro. Continuo fiel à estética náufraga numa ilha deserta. Diz que a doença já vai embora. Renovo o estoque de papel higiênico e de cerveja, porque vamos longe nessa. Então, só digo o seguinte: ignorem o presidente, lavem as mãos e fiquem em casa. Vai passar. Inclusive ele.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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