Imaginação aumentada

A campainha tocou e sem eu abrir a porta ele entrou. A campainha foi apenas um aviso. Um sinal que mais alguém se juntou a mim naquela tarde de verão. O acesso foi permitido um dia antes. Acesso restrito à minha sala de estar.

Meu amigo estava vestido com uma roupa meio maluca, meio anos 70. Reconheci o Michel por causa de seu ID. Essa é a parte mais divertida. Pessoas podem ser o que quiserem no meu espaço de realidade aumentada. É quase como um encontro real, com direito a doses de ficção.

A sala é para todos. A cozinha é para quem curte comida, obviamente. O quarto é para acessos mais íntimos. Na lavanderia não acontece nada. Acho que ninguém se diverte lavando roupa, né? Pessoas entram e saem da casa. Deixam mensagens num livro em branco.

Ouvem minhas músicas. Veem meus seriados favoritos comigo em tempo real. Compartilham trechos de livros. Batem papo. Deixam estímulos na minha rede neural. Fazem parte da minha ficção particular.

A TV foi comprada por U$ 0,99 e a assinatura dos canais custa algo como U$ 2 mês. O sofá é italiano e baixei com um código promocional. O design da minha casa é lindo e tem a minha cara. O quadro da entrada fui eu que pintei. A casa é imensa e construí com recursos que antigamente se assemelhavam ao MineCraft. É aqui que recebo amigos, conhecidos e estranhos. É aqui que todos podem manter contato e acompanhar minha vida.

Nesta “rede social”, podemos viver em um pequeno apartamento e estar numa mansão ao mesmo tempo. Ou habitar um bar. A construção é nossa.

Antes de sair, meu amigo registrou uma reação, algo próximo a um like lembrando o jurássico Facebook. Meu amigo é vintage. É alguém que viveu nos tempos em que as pessoas ficavam olhando para uma tela a fim de acompanhar o que os outros estavam pensando, falando, comentando. Foi embora sem dizer tchau. Fechou a porta e cinco minutos depois mandou chocolates de presente para mim.

Pena que a tecnologia é tão atrasada e não consigo sentir o gosto desse chocolate 85%. Melhor tirar meus óculos e voltar ao mundo real porque ainda existem razões para isso.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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