Impossível comer pirâmides

A Folha chamou de “Hora do recreio” o debate sobre a crônica no “Encontro Folha de Jornalismo”, realizado semana passada. Supõe-se que, para o leitor, a crônica seja um intervalo de lazer entre os temas mais sérios do noticiário —política, economia, negócios, futebol, assuntos internacionais. Da mesma forma, o recreio é o intervalo entre as aulas de português, matemática, história, biologia, química. Mas o título não desmerece a crônica e muito menos, o recreio.

Os 15 ou 20 minutos diários do recreio podem ser a melhor lembrança da passagem de muita gente pela escola. Serviam para paquerar as colegas, discutir futebol, criticar a diretoria, falar das pernas da professora de geografia ou fumar escondido. Era do recreio, o território da socialização, e não da sala de aula, que se saía para a vida. Da mesma forma, a crônica. Muito depois que as notícias importantes de determinado dia tiverem virado fumaça na memória do leitor, será possivelmente de uma crônica que ele se lembrará – talvez pelo resto da vida.

Rubem Braga produziu muitas assim: “Aula de inglês”, “Homem no mar”, “Nós, imperadores sem baleias”, “Recado ao Sr. 903″, “Ai de ti, Copacabana” e minha favorita, “O pavão”. Paulo Mendes Campos, outro — vide “Carta a um amigo” “Ser brotinho”, “Encenação da morte”. E Antonio Maria? Só ele poderia ter escrito “Evangelho segundo Antonio”, “Café com leite”, “Considerações sobre o sono” e tantas mais.

E o que dizer de Vinicius de Moraes (grande cronista bissexto), Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, Elsie Lessa, Millôr Fernandes, Carlos Heitor Cony, José Carlos (Carlinhos) Oliveira e Ivan Lessa, para ficar apenas nos clássicos modernos?

Os cronistas fazem biscoitos, não pirâmides – dizia, com certo desprezo, Guimarães Rosa. Ótimo, respondo eu. Impossível comer pirâmides.

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Ruy Castro – Folha de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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