“J’accuse”: o pequeno bom soldado de Polanski

Se ao princípio poderá ser motivo de estranheza o interesse de Roman Polanski em adaptar o caso Dreyfus ao cinema, em retrospectiva ele surge-nos como inevitável. Polanski, como Dreyfus, sentiu na pele o anti-semitismo, com a infância passada no Holocausto entre o gueto de Cracóvia e casas de estranhos sob uma identidade falsa. Polanski, como Dreyfus, sofreu acusações injustas, pelo menos quando apontado, por parte de uma imprensa supersticiosa e moralmente sórdida, como responsável indirecto pela morte de Sharon Tate ao, entre outras calúnias, levar uma vida devassa de drogas, bacanais e rituais satânicos.

E lendo na sua autobiografia o desenvolvimento do seu próprio controverso processo judicial, compreende-se que Polanski, como Dreyfus, se encara como vítima de um sistema adulterado. Falsos testemunhos, juízes parciais, facciosismo, perjúrio, cárcere, tudo isto Polanski diz que conheceu com o seu caso. O cineasta sabe o que é, portanto, viver no universo que quase sempre retratou no seu cinema: inseguro, paranóico, cínico, kafkiano até certo ponto, com as personagens a serem vítimas fatais do absurdo. É desse universo que vem J’accuse (J’accuse – O Oficial e o Espião, 2019).

Fresco histórico que é também filme de espionagem, policial e courtroom drama, o título poderá induzir o espectador no erro de que a personagem central é Émile Zola, o escritor naturalista cujo artigo publicado no jornal L’Aurore denunciou os erros militares, políticos e judiciais permitidos pelas forças armadas quanto ao caso Dreyfus, militar judeu injustamente acusado de alta traição por espionagem, cuja sentença draconiana foi a prisão perpétua na Ilha do Diabo. Não é esse o caso [esse filme já foi feito, chama-se The Life of Émile Zola (A Vida de Zola, 1937) e é um dos biopics mais interessantes da Hollywood clássica]. Ao invés, J’accuse foca-se em Picquart, o coronel que descobriu a verdade quanto ao processo e, na rejeição da conivência com a estratégia racista e nacionalista do exército, tentou trazê-la ao conhecimento público, causando o escândalo. É um filme hitchcockiano no seu jogo de espiões, atmosfera paranóica, falsos culpados e ambiguidades morais, com o acrescento de reconstruir um caso real de forma inegavelmente casuística (desde a primeira cena, com a degradação de Dreyfus) e com o sentido do absurdo típico do realizador (a fácil aceitação do testemunho ilógico e contraditório do grafologista, por exemplo).

Há, portanto, um misto de disciplina e rigidez militar que caracteriza o filme, o qual Polanski expande para a realização.

As semelhanças levam-nos a invocar outro trabalho recente de um cineasta veterano octogenário, Richard Jewell (O Caso de Richard Jewell, 2019) de Clint Eastwood, na medida em que ambos partem das acusações que pairam sobre um inocente para criticar instituições corrompíveis, assim como a forma como estas se opõem à integridade individual, fomentam intolerâncias e manipulam a opinião pública por investigações enviesadas, tendenciosas e negligentes. Mas o filme de Polanski é mais desconfortável e amargo, sem a candura e humanismo do de Eastwood. E enquanto o segundo é um filme sobre uma amizade, o primeiro é sobre um homem.

Daí aquela cena do começo, onde o aluno Dreyfus questiona directamente o professor Picquart se a má nota que lhe deu foi derivada do facto de ser judeu. Ele responde que “tenta” (Dreyfus salientará posteriormente o termo empregue) manter as opiniões pessoais afastadas do seu trabalho. Que é o mesmo que dizer que Picquart, anti-semita assumido, age por sentido de dever e consciência pessoal, assume uma postura de probidade e continência, independentemente dos preconceitos que nutra por terceiros, por mais que estes possam ser normalizados na França fin de siècle. Picquart fascina por causa dessa complexidade, de uma personagem com traços de carácter censuráveis que não deixa ainda assim de obedecer a um código ético castiço na luta contra a corrupção e o etnocentrismo, sobrepondo-se nele a justiça à “honra militar”, ao “orgulho nacional”, ao “bem-estar da nação” e outros chavões hipócritas tornados pretextos para a abominável condenação da inocência.

Há, portanto, um misto de disciplina e rigidez militar que caracteriza o filme, o qual Polanski expande para a realização. Daí a secura, a austeridade, a severidade dela, com as suas composições rigorosas, cores frias, vozes graves, portes autoritários e movimentos metalinos a corporalizarem visualmente um mundo álgido, taciturno e asfíxico, frequentemente coberto por um céu de cor lívida. E não é dizer tudo. Da interacção das personagens com o espaço (uma janela que não se abre no edifício de contra-espionagem contrastada com a que se abre facilmente no lar de Picquart) à construção do suspense em momentos-chave (a antecipação da investida no duelo aguerrido entre Picquart e um militar que o havia chamado de mentiroso em tribunal) passando pela organização de autênticos tableaux vivants (aquela cena do piquenique reminiscente de algum Manet, por exemplo), o cineasta demonstra aqui alguma da mise en scène mais matura, precisa e elegante da sua carreira.

E há aquilo que também nos parece de destacar, as várias alegorias e metáforas que o filme contém, que tanto podem ir de uma escala abrangente – a sequência onde parisienses irados queimam os livros de Zola na rua e pintam estrelas de David nas vitrinas de lojas judaicas, relembrando um outro caso de racismo de repercussões globais, mas do séc. XX (Polanski vê o anti-semitismo como um fenómeno cíclico, se não constante) – como a uma pequena, pela atenção dada a objectos em planos de um detalhe extremo. Um exemplo mais alongado para este último aspecto, numa cena em que Picquart discute com os seus superiores, onde um oficial dos serviços secretos, enquanto fuma um cigarro, tenta convencê-lo a ficar calado quanto ao processo e a ser alocado para um lugar longínquo em inspecções estéreis. No final desta conversa, a câmara acompanha a mão do dito oficial a levar o objecto ao cinzeiro, havendo uma alteração de escala até a mão ficar ampliada e o cigarro ser apagado em grande pormenor. Um cigarro apagado não quer dizer nada de especial. Mas um cigarro apagado no final de uma conversa intimidante, acompanhado por uma panorâmica e um zoom in que seguem o movimento da mão ao cinzeiro, assim como pela música dramática certa, faz com que o efeito seja amplificado, tornando-o, neste contexto, uma metáfora visual para o silenciamento de um homem. A analogia com que escolhemos descrever a obstinação de Picquart? Um cigarro que se recusa em ser apagado e que, mesmo depois de abandonado e atirado ao chão, arde solitário até ao fim. Afinal, é também assim que começam os incêndios.

Duarte Mata – À Pala de Walsh

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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