René Ariel Dotti por inteiro – parte VI

Concluído o memorial descritivo e localizados os demais documentos necessários, o Wilton Paese disse que ia levar tudo prá casa e que, na manhã seguinte, me ligaria. Trabalhou a noite inteira. Antes das oito da manhã, ao telefone, Paese disse que estava tudo pronto. Só precisava do dinheiro. Cheguei na Secretaria, o professor René já estava lá, aflito, e eu disse que só faltava entregar o empenho para o Paese.

O professor mandou o financeiro efetuar as providências necessárias. Surgiu um pequeno problema: o empenho tinha que ter o beneficiário do depósito, que era uma das Varas da Fazenda Pública de Curitiba, mas não sabíamos qual, eis que o processo teria que ser sorteado e distribuído. Liguei pro Paese, que já estava na Procuradoria. Ele respondeu que iria redigir uma petição, pedindo distribuição de urgência e que nos encontrássemos no Fórum. O professor, então, me disse que fosse lá e pedisse a distribuição de urgência. “Depois, me liguem. Me liguem!”

Cheguei no Fórum, encontrei o Paese e pedimos para ser recebidos pelo juiz diretor do Fórum, que era o doutor Tesserolli, depois desembargador. Foi uma conversa tranquila, e ele, excelente magistrado, entendeu tudo e despachou na hora a ordem para o distribuidor. Fomos até a distribuição, colocaram quatro bolinhas numa urna, rodaram e tiraram a bolinha com o número da Vara. Pedi para usar o telefone e liguei para o gabinete do Secretário. O professor René atendeu, eu falei qual era a Vara e ele disse que esperássemos no térreo, que o empenho está indo com a indicação do beneficiário do depósito.

Paese e eu descemos ao térreo e ainda não havíamos terminado de fumar e eu nem acreditei: o carro da Secretaria chegou e o próprio professor René desceu com o empenho na mão. Fomos direto ao balcão da Vara e perguntamos se o juiz estava. Com a resposta positiva, o professor falou ao atendente: Diga ao doutor Bortolleto, também depois desembargador, que o Dotti deseja falar com ele. Não deu um minuto e fomos recebidos. Só o professor falou. O doutor Bortolleto leu a petição, examinou os documentos e mandou chamar o Adalberto, que era o juramentado da Vara, meu amigo desde os tempos da faculdade: “Adalberto, estou despachando agora a ordem de imissão de posse para o Estado do Paraná e o despejo do proprietário. Chame o melhor oficial de Justiça e datilografe os mandados. Quero-os cumpridos ainda hoje”. O professor René ficou muito emocionado e segurou o choro. O Paese voltou para a PGE e nós para a Secretaria.

No final da tarde, o Turco apareceu na Secretaria, acompanhado pelo advogado, pedindo para falar com o Secretario. O professor ficou desconfiado e chamou os assessores que estavam envolvidos com o caso. A conversa não poderia ter sido melhor. Disse que queria fazer um estacionamento no local e como foi citado naquele dia estava ali para dizer que aceitava o valor da indenização e que não iria brigar, já estava respondendo a um inquérito policial por demolição sem alvará. Queria encerrar o processo. Voltei a falar com o Paese e, no dia seguinte, ele e o advogado do turco firmaram uma petição conjunta pedindo a extinção do processo pela aceitação do valor depositado e a ordem para o Registro de Imóveis transferir a propriedade do imóvel ao patrimônio do Estado.

Contudo, a guerra ainda não havia terminado. Não havia dinheiro para a reforma. O professor René, certamente envergonhado, não bateu na porta do Banestado. Foi no Bamerindus. Lá o diretor de marketing disse que era impossível qualquer doação. Estavam construindo um teatro no prédio sede, o Palácio Avenida, que fica no calçadão da Quinze, quase na frente da Boca Maldita. O professor, como grande advogado que era, começou a falar, mansamente, que não poderia, na “sua ignorância”, entender como um banco, do porte do Bamerindus, não poderia arcar com dois pequenos teatros ao mesmo tempo. O diretor ficou envergonhado e disse que iria encaminhar o pedido ao presidente do banco. Dias depois, ligou para o professor René perguntando em qual conta corrente poderia depositar a quantia solicitada pelo ofício do secretário.

Como expliquei acima, não era necessário fazer licitação. Mas uma coisa era contratar um topógrafo e outra, completamente diferente, era reformar um teatro. O professor disse que não bastava “a mulher de César parecer honesta, tinha de ser honesta”. Que o Departamento de Obras da Secretaria de Administração fizesse a licitação. A mesma foi feita e ganhou a construtora que apresentou o menor preço. Mas as coisas não saíram exatamente como se imaginou. Para ganhar a licitação, o dono da construtora cotou um preço baixo. Quando entrou na obra viu que não teria o lucro que imaginava, começou a fazer corpo mole, colocou dois peões para limpar a caliça e não assentou um tijolo. O professor René entrou em desespero e voltou na PGE. Desta vez, escalaram o Rogério Distéfano, que, nas horas vagas, é o responsável pelo blog O Insulto Diário. Às vezes, tem dia em que o Rogério não insulta ninguém. Em compensação, no dia seguinte, publica meia dúzia deles. Distéfano é um dos melhores advogados que conheço. Transita em todas as áreas do direito com inegável talento. Possui um extraordinário poder de síntese. Em duas laudas, explica e fundamenta o que outro advogado faz em dez ou quinze. Rogério estudou a situação e deu o veredito: “Professor, uma ação dessas demora anos, tente um acordo com a construtora. Fale com o Departamento de Obras”. O secretário, advogado com grande experiência e sentindo firmeza no parecer do Distéfano, seguiu o conselho. Foi ao Departamento e quem salvou a pátria foi o Maurício Sá de Ferrante. Chamou o dono da construtora, utilizou de alguns argumentos digamos mais incisivos e, ao final, o sujeito desistiu da obra em troca do pagamento da limpeza e da retirada da caliça. Tempos depois, o Maurício me contou que, quando comunicou o acordo ao professor René, ele começou a chorar de emoção.

Nova licitação foi feita, uma construtora competente foi contratada e o teatro foi reinaugurado. Meses depois, o Zé Maria Santos faleceu precocemente. Ulisses Iarochinski, jornalista, ator e agora romancista, ex-aluno do Zé Maria, começou uma ferrenha campanha pelas páginas do Jornal do Estado para que o teatro tivesse o nome do Zé Maria. Os produtores replicavam nos outros jornais a sua contrariedade.

A briga foi feia. O professor René, procurado pelos dois lados, não entrou na bola dividida. Afirmou que tinha sofrido um grande desgaste pessoal e emocional com a desapropriação e reforma do teatro e que, na sua opinião, as duas partes tinham lá suas razões. Meses depois, o Ulisses convenceu o deputado Algaci Túlio a apresentar um projeto de lei dando o nome do Zé Maria ao Teatro. O relator do projeto, deputado cujo nome lamentavelmente me escapa, foi salomônico, propôs que o nome fosse Teatro da Classe José Maria Santos. A lei foi aprovada.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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