Lembranças e confidências na caneca de café

Era como se o traçado daquela fumaça e seu forte aroma quisessem dizer-lhe alguma coisa, contar um segredo, revelar-lhe uma informação guardada a sete chaves. Observava os vapores que se desprendiam da caneca com café e só conseguia pensar naquela mulher e nas mensagens do sonho inesquecível. A presença dela se impunha em sua vida assim: aromática, forte, marcante, imprescindível. Sentia que a fixara de mansinho nos seus pensamentos para lhe fazer companhia o dia inteiro, mesmo quando nem tinha consciência disso. Estava ali.

Como o café, espalhava junto ao cheiro uma espécie de cuidado invisível, que o inebria de uma paz quase que aderente ao corpo, uma membrana de proteção. Aquela sensação lhe vestia como uma capa munida de poderes extraordinários, uma couraça ou algum tipo de amuleto para enfrentar com coragem e com firmeza as lutas cotidianas e os desafios impostos à sobrevivência nos dias e horas em que um não estivesse ao alcance dos olhos do outro. Igual ao efeito da saudade: essa ausência que se faz presente.

Vidas passadas! A tese daquele sonho, admitia já esse ex cético e orgulhoso rapaz, explicava a necessidade que ele sempre teve de mostrar aos outros e, em especial às mulheres que buscou impressionar, todas as suas vitórias, troféus e conquistas ou o quanto esculpiu-se sob um código de valores de consagração. Ainda que pudesse fazê-lo, não arriscava aproximar-se com receio de ser novamente rejeitado, afastado ou banido do seu convívio. E se essa condição não partisse dela, o distanciamento viria por outras forças ou razões quaisquer para devolvê-lo a um lugar de sombras e agonias. A única lógica decisivamente plausível seria assumir aquela tese.

No sonho, todas as formas de digerir tamanhas perda e privação serviram de alicerce para que alcançasse, no momento atual, a ciência dos seus valores e se encontrasse endurecido nas fortalezas de proteção das dores e feridas do passado, atrás de escudos de auto amor que o tornasse menos vulnerável. Lá atrás, buscou em inúmeros rostos sem culpa a blindagem que permitisse atravessar e suportar o restante dos dias e anos até o final daquela existência em que sentia-se ferido e incompleto. Eis que vinha justo a lembrança dessa mulher, agora, lhe reabastecer o peito de coragem. Coisa de doido isso!

Em outro canto, ela confidenciava também à bebida quente entre as mãos suas dúvidas e estranhamentos. De onde é que partia essa sensação gritante de familiaridade? Por que, raios, se surpreendia, às vezes, inalando um cheiro de fragrância masculina – sabe-se lá de alguma loção pós-barba – que carregava um frescor de banho tomado? Não fazia sentido e nem se encaixava no ambiente que a cercava. Percebeu, pela primeira vez, no corredor, perto da porta da entrada do apartamento, e sondou se havia alguém transitando na área comum do prédio, lá do lado de fora. Mas não havia nada e nem ninguém. Aquele cheiro misteriosamente brotava somente de dentro da sua imaginação e tomava conta do seu ser. Logo, consumia-se em um carinho tão grande por aquela materialização, que lançava desconfianças sobre a sanidade de suas faculdades mentais.

Deixou-se levar. Fechava os olhos e a imagem se formava involuntariamente. De vez em quando, lhe chegavam saudades repentinas ou uma tristeza inexplicável, distraída e intensa, que a desarmava. Saía desse transe quando a intuição lhe gritava a urgência de trocar a frequência daquela energia pela compreensão de uma certa conexão que se formava e que, com muita paciência, lhe apontaria as respostas a todas as perguntas. No seu devido e sagrado tempo. Para isso, o caminho a ser percorrido se apresentava na forma de sentimentos e de reações. Consumiam-se seus dias nesse misto de dúvidas e de esperas. Confianças e inquietações.

Outros aromas ganhavam projeção na familiaridade impregnada nos dois. Era uma sensação que estimulava empreender, mas que também remetia ao repouso e ao conforto de estar em casa, naquelas férias preguiçosas de fim de ano. Tinha gosto de varanda florida ao cair de uma tarde de verão, depois da aguardada pancada de chuva. Refrescante e suave. A vontade sincronizada era de espreguiçar-se sem cerimônias, medo de julgamentos ou reprovações por colocar um pé no sofá ou comer na frente da TV.

Sentiam que se comunicavam sem gastar uma única sílaba, gesto ou som. E pareciam, na cabeça de ambos ao menos, saber o que o outro pensava e sentia, como reflexo direto de suas próprias ideias e comportamentos em cada situação… Só se queria saber mais!

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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