Dia de chuva

Uma chuva se aproxima, ensaia um sopro de ar refrescante também de dentro para fora. Já é possível ouvir seus sinais, como na “Anunciação” do pernambucano Alceu Valença. Que venha suave, sem causar estragos, conflitos desnecessários, e que purifique, limpe o acúmulo de poeira e as fuligens para exibir somente as emanações e cores da própria natureza.

Os dias nublados penetram na alma da gente como uma injeção de introspecção, para renovar ideias e, como consequência direta dessa imersão, sacudir e reanimar o ser. Não sei quem primeiro saiu rotulando-os de tristes e macambúzios. Desconhece sua intimidade e determinou um mal-estar desembestado, sem graça e sem noção. Dias nublados são esclarecedores, clamam pausas, impõem descanso, sossego… Pedem por calma, por colo e aconchego, transmissores de uma boa dose de segurança emocional e de proteção para a criança interior, que engatinha ainda na consciência de si e sente medo.

As nuvens por sobre as nossas cabeças se manifestam reveladoras e explodem em cores e significados atrás da cortina dos olhos, num mergulho vazio de pensamentos, mas carregado de sentidos. A mensagem é bombeada à mente por uma intuição que grita compreensão e, quando as energias se alinham, de novo: anunciação!

Em dias de chuva, os olhos enxergam melhor quando estão fechados. Retêm e arquivam nas gavetas da memória só o que não pode ser esquecido e que precisa ser constantemente revisitado. O ar, intoxicado de coisas concretas e descartáveis, se banha agora ao fluxo dessa purificação.

Mas bem no dia em que chove, eu sinto saudades. De tudo e de qualquer coisa aleatoriamente, observando a água escorrer pelo vidro e riscar a silhueta distraída de outra pessoa, que, espelhada, observa e acompanha o mesmo caminho molhado na janela. A cena em particular paralisa o vento e a respiração para eternizar toda a ternura contida em uma única gota d’água compartilhada. Até desaparecer e restarem apenas as duas imagens, encarando-se!

É como se aquela atmosfera lacrimosa martelasse com mais força as recordações que insistem em conversar com nossos silêncios. Nos dias assim, a alma anseia por um abraço, daqueles que aproximam os corpos comprimidos sob o abrigo de guarda-chuvas de afetos, entendimentos e cumplicidades. Não é saudade triste, é reconhecedora.

Que essa chuva prometida caia com suavidade em seu devido e precioso tempo. Driblo a ansiedade, fazendo contas dessa espera: subtraio as sombras das expectativas, com adições de afeto e progressões de paciência em elevada potência. Divido os períodos e projeto chances reais de que essas equações resultem em um gráfico cheio de pontos convergentes, encontros de linhas e as tão elásticas e humanas margens dos erros  sorridente, patética e perfeitamente perdoáveis.

É tanto carinho embutido nos passos dessa perseguida convergência, que arranca suspiros e interrompe a respiração. Se na métrica das almas tudo vale a pena, como dizia Pessoa, há uma vastidão de percursos por explorar. Um brilho no raio de cada olhar, um dia de cada vez, entre os segredos no galgar da caminhada. O espírito, inundado da magia, está inebriado desse frescor.

Clareia e o ar ganha uma nova paleta de cores e de esperanças. A natureza não cansa de nos distrair e de magnetizar. A inspiração da cena resgata seu propósito essencial, faça chuva ou sol: das livres e espontâneas entregas.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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