Mais do que posso eu suportar

Escutava música com o corpo despachado na rede. Não estava só. Era protegida por seus soldados – seu exército mal assombrado; uma infantaria com mais de dois mil anjos e demônios prontos para qualquer guerra, desde que perdida. Ouvia Amy Winehouse em “Back to black”’. Amava de paixão aquele CD. A primeira faixa, “Rehab”, faz brincadeira com as idas e vindas da inglesinha a essas clínicas que prometem a salvação de viciados. Ria-se com a desgraça descrita numa levada meio funk, meio soul. Pensava, Essa Amy sabe o que é dor; parece até que canta para mim.

Ela também estava numa clínica. Também fora fichada contra sua vontade, também vivia a mesma rotina de desintoxicação, banhos gelados, caminhadas, frutas e legumes. E, pior, a visita dos parentes. Todos, sem exceção, portando aquele ar magnânimo de, Coitadinha, olha só esse estado, tomara que os remédios façam efeito.

Ninguém tinha sacado nada. Por que bebia, por que entrava em depressão assim do nada, por que cortava os pulsos, batia com a cabeça na parede até cair, ainda bem que, desmaiada, mergulhava em sono profundo por dias e dias e podia fugir da realidade.

Jamais seria compreendida. Quer ver? – perguntou a alguém da legião invisível. Acenou para um cara de jaleco e disse, Êi, você aí, por que estou aqui, pode me dizer o que estou fazendo neste asilo? Quando o homem respondeu, Olha, cuidado, lembre-se da solitária, te isolo de novo, ela se encolheu no canto, assustada.

Voltou ao iPod e a Amy. Foi à sua música favorita, “Love is a losing game”. Ofereceu o fone para o homem pôr no ouvido, na esperança de que a entendesse. Está lá, com todas as letras: “Que bagunça nós fizemos/O amor é um jogo perdido/Mais do que eu posso suportar”. É tão simples. Mas o homem nem quis saber. Nunca jogara seus vidros de perfume pela janela, nem depredara o carrinho de sorvete no parque de diversões. Não entendia nada de paixão, dependência. Não fazia a menor idéia do que era pirar de amor, essa insolúvel pendência que firmara com a própria demência, no ápice da carência.

Então misturou-se à multidão que havia nela e, mil pedaços, voltou para os achados e perdidos da sua alma, protegida por seu exército.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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