Mercer e seus outros

Muitos anos depois de eu ter deixado a Fundação Cultural ele veio me pedir desculpas, alegando ter me dado muito trabalho na época. Não me lembro se reagi com uma grosseria ou um “deixa pra lá”, mas não posso deixar de lembrar que ele me deu, sim, trabalho. Não só aquele trabalho de diretor-executivo da FCC, muitos pelos 20 anos nos quais convivemos.

Apresentou-me uma legião de amigos, um número jamais aferido de bares e restaurantes e um bom humor sem igual. Mercer era um sujeito diferenciado. Eu não havia, até então, conhecido um redator publicitário de terno e gravata, de resto traje incomum aos criativos. Pois ele envergava o seu para cumprir também o expediente no Tribunal de Justiça. Trabalhava em dois, três lugares ao mesmo tempo, ainda que se sentisse à vontade, mesmo, nas mesas de bar.

Dentro dele habitava um artista argentino que só se manifestava na passagem do sétimo para o oitavo whisky – que ele bebia em copo alto, com água gasosa e muito gelo. O argentino não acordava antes do sétimo, jamais depois do oitavo. Surgia sempre com o cumprimento tradicional: Señoras y señores, muy buenas noches.

A partir dali, nem Dios seria capaz de imaginar o que viria. Um ventríloquo falando portunhol, um dançarino de tango, um compositor munido de seu bandoneón imaginário, tudo poderia ser possivel. A noite só terminava ao enésimo chamado da Maria Helena ou de algum impertinente como eu, tratando de levá-lo para casa. Não sem protestos. Mais de uma vez gastou saliva xingando gerações anteriores da minha família, até que eu o sentasse num sofá da sua própria casa. Para ir embora era obrigado a levar a chave, caso contrário ele fugiria.

Passou abstêmio os últimos 15 anos de vida. Tinha consciência da impossibilidade de convivência com o artista argentino. Preferiu deixá-lo em hibernação a correr o risco de saber no dia seguinte, pelos outros, as artes inventadas na noite anterior pelo rebelde personagem.

Criou, ao longo da vida, uma série de campanhas, temas, símbolos de alto nível. O Coração Curitibano, para as campanhas de Jaime Lerner, e O Lixo que não é Lixo, para a Prefeitura de Curitiba, são duas das mais marcantes. Sob a pele do Barão de Tibagy escreveu deliciosas crônicas sobre bares, restaurantes e os prazeres da mesa. Compôs músicas e sátiras de todo o tipo.

Era mestre em pegar assuntos da moda e transformar em refrão musical, como fez quando surgiram as palavras mordomia e, anos depois, maracutaia. Para um amigo que sofria de micoses e namorava moça de Blumenau a veranear em Camboriú, mudou a letra de Because of You para Micose of You – rimando com as duas cidades. As demais rimas, nem queira saber, leitor, ainda que possa imaginar.

Foi um gênio da arte picaresca, mestre no texto e na esgrima verbal. Uma pessoa adorável, enfim.  Horas antes do derrame que o matou, conversamos pelo telefone. Deixamos marcado para a semana seguinte um jantar no restaurante Camponesa do Minho. Na data estabelecida, fui lá jantar com a Tânia. Ele tinha sido enterrado horas antes. Depois escrevi uma crônica, Mercer não foi ao jantar.

Ontem procurei a crônica para que fosse publicada nessa homenagem que se fará a ele dez anos depois. Não encontrei. Sumiu em algum escaninho, talvez excluída de um arquivo qualquer de computador. Pouco se me dá, escrevi esta. Perder uma crônica não é nada para quem perdeu um amigo como Sérgio Mercer.

25|fevereiro|2006

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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